postado em 18/10/2009 08:22
Ela escreve para viver. Foi assim, desde menina, nos primeiros rascunhos. Filha de gregos, mas nascida no estado do Rio de Janeiro, ela encontrava no papel a única forma de se comunicar com o mundo. Do Rio, aos 6 anos, a menina se mudou para São Paulo, com a família. Lá, tempos depois, conheceu um grego, que havia pouco desembarcara no Brasil. Os pais, arraigados às tradições, fizeram gosto no namoro e no casamento. E a menina que gostava de escrever se casou aos 29 anos. Ele tinha 35. Desbravador, o marido, que mal falava português, ouvira contar que uma nova cidade se ergueria no Planalto Central. Em 1959, ele veio conhecer de perto o que seria a capital. E aqui desenhou o futuro. Assim, não pensou mais que uma vez. Largou São Paulo e veio com a mulher, ainda sem filhos, para a terra de JK. ;Nos casamos em 27 de dezembro de 1959. Em 10 de janeiro de 1960, nos mudamos para Brasília;, conta Stella Alexandra Rodopoulos. Aqui, os recém-casados foram morar no Núcleo Bandeirantes, como todos os candangos no início de tudo. O marido abriu uma madeireira, com os irmãos. Ela ficava com o serviço de escritório.
Da madeireira dos irmãos Rodopoulos saíram muitas portas e janelas dos órgãos públicos da capital. ;Trabalhava-se dia e noite. Íamos atrás de toras de madeira por esse cerrado. Por isso me considero uma autêntica candanga;, ela diz. Escondida, quando estava sozinha, voltava a ser a menina que rabiscava pensamentos e poemas de amor. ;Ele (o marido) não gostava que eu escrevesse. Dizia que isso não dava dinheiro. Eu lhe respondia: ;Eu não escrevo para ganhar dinheiro, mas para me sentir viva;. Mesmo assim, ele não gostava. Era um homem muito racional, pensava apenas nos negócios;.
" />A mulher com alma de escritora esperava o marido dormir para rascunhar seus escritos. ;Escrevia sobre o amor. Sempre fui uma pessoa apaixonada;, admite. E faz uma revelação comovente, no meio da conversa, na manhã nublada da última sexta-feira: ;Se uma coisa não representa um pedacinho de amor, eu não dou valor algum;. O marido desbravador prosperou. Ampliou os negócios. Tornou-se homem rico, respeitado na capital recém-inaugurada. Nasceram os quatro filhos do casal. A menina que escrevia coisas de amor virou mãe. E cuidou da família com esmero de quem escrevia mais uma poesia.
O tempo passou. O desbravador grego que chegou aqui no começo se estabeleceu definitivamente na cidade. Em 1981, quase escondida, sem aprovação do marido, Stella juntou um pouco do muito que tinha guardado e lançou, por conta própria, seu primeiro livro, aos 51 anos de idade: O sentido do amor. Era cheio de poesias. Ali, ela escreveu coisas como: ;Meus prazeres transporto nas asas dos pássaros cantantes e minhas dores conforto no teu olhar acariciante;.
O livro foi bem aceito. E logo as pessoas passaram a lhe perguntar quando viria o próximo. Envergonhada, Stella silenciava. Caladinha, corria para o papel e a caneta e viajava nos próprios pensamentos. Ali, só cabiam ela e suas poesias. Em 1985, quando completou 54 anos, lançou o segundo livro, Pétalas de amor. Quem leu ficou encantado com a sutileza dos seus escritos, como este: ;Sou da noite que me acalma quando presa está minh;alma. Sou das flores, sou dos campos que perfumam meus amores...; .
No poema Extasiada, ela diz: ;Vou correr da verdade que me abala e passar para a outra sala. Encontrar o quê? Quem sabe flores, de todas as cores. Quem sabe frutos de todos os sabores. Quem sabe deuses, deuses esbeltos deste mundo arquitetos...; Mais uma vez, os elogios foram imensuráveis. Teve até segunda edição, em 2006. Stella passou a acreditar, de fato, que era escritora.
Mudanças
Em 1994, quando ela ainda escrevia quando todos dormiam, o marido de Stella morre. Viúva, sozinha, começa a escrever para crianças. A inspiração veio com os netos. Em 1995, vencido o medo da reprovação, ela dá asas à sua meninice. E lança, em 1995, seu primeiro livro infantil, a historinha Mariela. Sucesso total com a meninada. No ano seguinte, mais uma obra, O cavalinho sonhador.
De lá pra cá, vieram mais sete publicações, entre literatura infantil e infanto-juvenil. Algumas dessas obras foram adotadas em escolas de Brasília. Parou por aí? Nem uma recente fratura no fêmur atrapalha os planos da escritora. Mês que vem, lançará mais um livro: As flores cantantes, que contam a fábula de Isabela, a menina que, de tão pobrezinha, tinha apenas um belo jardim para enfeitar a vida.
Com ilustrações bem cuidadas e convidativas para a leitura, o livro acabou de sair do forno. Está quentinho. Aos 79 anos, no peito de Stella bate um coração de menina. A escritora não vê a hora de novembro chegar. Ao mesmo tempo, não para de escrever. Termina Psicografia do amor. E não há ritual para rabiscar os pensamentos que vêm como se fossem enxurrada. ;Escrevo quando vem a inspiração. Não tem hora certa. Às vezes acordo de madrugada, pego papel e caneta e começo. Sou movida emoção.;
Ainda na sala de visita da casa de um dos filhos, no Lago Sul ; ela mora na Asa Sul, mas está ali enquanto se recupera da fratura do fêmur ;, Stella se despe como só os escritores conseguem fazer: ;Quando escrevo, não sou quem estou ali. Viro outra pessoa. Choro, rio, me entrego à poesia e à história que estou contando;. Emocionada, segurando a bengala que lhe dá sustentação ao andar, continua: ;Escrever foi a libertação da minha alma, o meu desafio e desabafo constante;.
Condecorações
A menina filha de gregos, que teve uma infância muito pobre e escrevia para continuar viva, hoje é condecorada na terra que ajudou a existir e também fora daqui. Neste mês, no aniversário de 79 anos (5 de outubro), recebeu o título de Cidadã Honorária de Brasília. Em 1998, sua literatura também foi premiada em Paris, na Académie de Lut;ce, num grande concurso internacional. Muito antes, a escritora tornou-se membro da Casa do Poeta, da Academia de Letras de Brasília e do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal. Visita escolas públicas e particulares para falar de suas obras. Doou mais de dois mil livros às bibliotecas públicas do DF.
Mas o que Stella gosta mesmo é de escrever, mesmo sem medalhas, troféus ou diplomas. Quer continuar acreditando no que sai da sua alma pelas mãos. E quer, antes de qualquer coisa, se emocionar com suas poesias. ;As pessoas me chamam de Cora Coralina de Brasília. Fico lisonjeada, muito feliz com comparação. Dizem que escrevemos contra o desejo do marido, lançamos a primeira obra tarde, estudamos pouco (Stella cursou só até a 4; série, por falta de condições do pai), tivemos uma infância com muitas privações;, conta a hoje escritora, que um dia também foi bordadeira, doceira e costureira.
No fim da conversa, pergunto como ela se autodefiniria. Com a voz de quem acolhe, a mulher de 79 anos fita o interlocutor e diz, suavemente: ;Apenas uma pessoa sonhadora. Foram os sonhos que me fizeram chegar até aqui;. Não precisa perguntar mais nada. Antes que se encerre o bate-papo, ela indaga, diante das quase duas horas de conversa: ;Serviu, meu filho?; A escritora quis saber se a entrevista tinha valido a pena. Há coisas que não precisam ser respondidas. O silêncio comovido se encarrega da resposta. A única coisa que não ;serviu; foi não a ter conhecido antes. Stella é dessa gente encantadora ; e quase em extinção ; com quem vale a pena esbarrar por aí.
Não perca - As flores cantantes, novo livro infantil da escritora, será lançado em 15 de novembro, na Livraria Cultura (SGCV Sul, lote 22, CasaPark Shopping), às 16h.
Poemas de Stella
Canção do amor
Fitando teus olhos,
Derramando meu pranto,
Teu vulto me encantando,
Minh/;alma sorrindo...
É a vida, meu bem.
É a pureza do amor.
No espelho do asfalto molhado ;
teus olhos.
Nas águas que correm ;
meu pranto.
No ar que envolve meu corpo ;
teu vulto.
No mistério das ruas ;
minha alma.
No canto cristalino da chuva ;
nosso amor!
Eu
Canto trovas, escrevo versos.
Faço poesias, construo sonetos.
Sonho luas, amo sóis.
Percorro terras, absorvo mares.
Canto hinos, danço valsas.
Ouço músicas, toco sinos.
Beijo lábios, ganho amores.
Perfumo ares, pinto corres.
Vivo sonhos, mato tristezas.
Formo mundos, colho flores.
Venço mortes, gero vidas.
Esqueço dores, aqueço seres...
Eu... eu... eu... companheira de mim!
Brasília (Quando a cidade completou 25 anos)
Canto teu nome, Brasília,
na idade prata que tens!
Surgiste e me tomaste por filha,
pra juntas, criar tantos bens.
A minha cidade era Livre,
acolhendo empregado-patrão.
A capital crescia em febre,
porque assim queria a nação.
Com o sorriso de Juscelino
tudo se ergueu tão perfeito.
Alimento de um sonho menino,
palpitando forte no peito.
Tocando obras pioneiras,
outrora terrenos em lama,
relembro as horas primeiras,
barracos ardendo em chamas.
E agora que tudo tenho:
cidade pronta, sem par,
vem-me o passado em sonho.
Ah! Se eu pudesse voltar!