postado em 19/10/2009 08:29
Três quartos rebocados, um parquinho com poucos brinquedos, um caixote com alimentos doados e um sorriso no rosto de 51 crianças. Se não fosse pelo último detalhe, que significa muito mais que um mero detalhe, talvez a professora Sônia Maria Macedo já tivesse desistido de lutar. Há cinco anos, ela abriu, na Vila Estrutural, a creche Renascer e, desde então, atende meninos e meninas de 2 a 10 anos, filhos de catadores do lixão, sem cobrar nada pelo serviço. Sobrevive graças à ajuda de voluntários, doações e com o próprio salário, que recebe como servidora da Secretaria de Educação. ;Não é fácil. Todos os dias, penso em fechar as portas, mas, quando olho para elas (as crianças), não consigo;, disse.Sônia abriu a creche há cinco anos para realizar um sonho antigo de menina e amenizar a aflição dos moradores da Estrutural que não têm onde deixar os filhos e, muitas vezes, acabam levando-os para o serviço insalubre. Foi criada em Palmeira de Goiás e não teve muitas regalias na infância. ;Minha família era muito pobre, mas, ainda assim, minha mãe dividia o que a gente tinha com os outros. Aquilo me marcou muito;, contou ela. Desde então, a professora decidiu fazer a diferença e passou a colocar a mão na massa para ver o brilho nos olhos de crianças carentes. Em 2004, abriu a creche na marra, contando apenas com a ajuda voluntária de Maria do Socorro Nogueira, atual diretora, que fazia a comida dos pequenos, contava histórias e os colocava para dormir.
Hoje, outros dois funcionários ; um administrador e uma professora ; se dedicam a coordenar as atividades do dia a dia e ensinar o bê-a-bá aos pimpolhos. O pagamento do salário deles é feito graças à realização de bazares e doações de empresas privadas. Para comprar os alimentos, Sônia reserva parte do seu salário. Ela, inclusive, há nove meses deixou de pagar a prestação de R$ 700 do carro que comprou financiado só para não deixar faltar comida para as crianças. A cada dois dias, é consumido um pacote de arroz de 5kg e as verduras para o almoço são colhidas aos sábados no chão da Central de Abastecimento do DF (Ceasa). ;Ninguém dá nada para a gente, não. Catamos os alimentos desperdiçados mesmo;, contou a professora Sônia. Quatro das 51 crianças vão para a creche só para tomar café da manhã e almoçar. ;Outro dia, eu cheguei às 6h45 e já tinha uma criança na porta esperando a creche abrir para poder tomar café da manhã;, contou a diretora Maria do Socorro. ;A maioria delas só come a comida que damos aqui;, emendou Sônia.
Ver a alegria dos pequenos serve de estímulo. Kayky tem 2 anos, mas já corre de um lado para o outro atrás do melhor brinquedo no parquinho. Gosta do escorregador e se diverte todas as manhãs e tardes com ele. Felipe, 5, também tem energia para dar e vender, mas não abre mão do giz de cera. ;Também gosto de desenhar;, disse ele, timidamente. As mãos de Sônia apresentam rachaduras e calos. ;O médico me disse que é estresse;, contou ela à reportagem, com os olhos cheios de lágrimas. Também pudera. Abrir uma creche não foi tão simples como imaginava.
Várias das crianças atendidas estão abaixo da linha da pobreza. As histórias de dificuldades aparecem quase todos os dias. ;Teve um garotinho que chegou e disse para mim: ;Tio, não aguento mais essa vida. Choveu e estava gotejando dentro da minha casa e também não tenho comida em casa;;, contou o administrador da creche, Leandro Campos. Algumas também ficam doentes com frequência em razão da poeira, do rio ou do lixo jogado na rua. Outras precisam de atendimento psicológico ou são portadoras de necessidades especiais. É o caso de Talita, que é epiléptica(1), sofre de obesidade e tem dificuldade para segurar a urina. ;Constantemente, ela faz xixi na roupa;, contou a professora Marlene Alves de Souza.
1 - Alteração
A Epilepsia é uma alteração na atividade elétrica do cérebro, temporária e reversível, que produz manifestações motoras, sensitivas, sensoriais, psíquicas ou neurovegetativas (disritmia cerebral paroxística). Para ser considerada epilepsia, deve ser excluída a convulsão causada por febre, drogas ou distúrbios metabólicos.
Um psicólogo seria bem-vindo
Muito mais que amor pelas crianças, os profissionais que trabalham na creche precisam de disposição para dar conta de todo o recado. Não é raro um menino ou menina deixar de frequentar o lugar para acompanhar os pais no aterro sanitário da Estrutural, o chamado lixão. ;Vez ou outra a gente tem que ir na casa para trazer essas crianças de volta;, contou Leandro. ;Estamos lutando contra a maré. Queríamos ter pelo menos um psicólogo para acompanhar essas crianças, mas a situação está complicada;, admitiu Sônia Maria Macedo. O salário dela como professora não é suficiente para manter o local, tanto que, desde quando a creche foi aberta, ela pediu cerca de R$ 10 mil em empréstimos. ;Toda vez que eu venho aqui eu choro;, confessou.
O intuito é transformar a creche em Organização Não Governamental (Ong). Sônia tem corrido atrás de providenciar a documentação. Agora, ela também que ampliar o espaço e montar uma biblioteca para atender toda a comunidade. O acervo conta com 800 livros doados por empresas ou colhidos de pessoas comuns na rua. Além de um espaço amplo com mesas e cadeiras, falta a estante para comportar os exemplares, mas Sônia sonha alto. ;A creche é muito pouco. São crianças que vão embora hoje e a gente não sabe se vai voltar. Temos que mudar a realidade das pessoas que vivem aqui;, avalia. ;Tudo foi muito difícil e continua sendo até hoje, mas acredito que pelas crianças todo trabalho vale a pena;, ressaltou a diretora Maria do Socorro Nogueira.
Para ajudar
Quem quiser auxiliar a creche com alimentos, roupas ou material de higiene pode entrar em contato pelo telefone 3465-4957. Doações em dinheiro podem ser feitas também. A conta para depósito é: 058/025.245-0 ; Banco Regional de Brasília (BRB)