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As cores fortes da saudade

Construções que datam da época em que Brasília estava sendo construída revelam um rico acervo cultural, principalmente pela originalidade com que foram pintadas. Mas a maioria delas é apenas um sopro na memória, confirmou o autor de um livro que conta essa história perdida no tempo

postado em 24/10/2009 07:10

Construções que datam da época em que Brasília estava sendo construída revelam um rico acervo cultural, principalmente pela originalidade com que foram pintadas. Mas a maioria delas é apenas um sopro na memória, confirmou o autor de um livro que conta essa história perdida no tempoA festa da inauguração havia acabado, Brasília já era a capital do país, Juscelino Kubitschek e Israel Pinheiro estavam vivendo a plenitude do sonho realizado e os operários voltaram para os acampamentos da Novacap e das empreiteiras que construíram a cidade. Eram moradias de madeira nos arredores do Plano Piloto. As primeiras tinham cor natural, mas, com o tempo, foram ganhando tinturas fortes, vibrantes, aquecedoras. Era a Brasília de madeira que havia construído a Brasília de concreto.

Às vésperas dos 50 anos, há raríssimos exemplares desse patrimônio. Restam muito poucas casas na Vila Planalto, um ou dois barracos no Núcleo Bandeirante, três ou quatro casas na Metropolitana e uma meia-dúzia no Acampamento Saturnino de Brito. As lembranças da Brasília de madeira ficaram guardadas em fotografias e algumas delas foram reunidas no colorido e comovente As cores da memória ; Retratos da identidade candanga (LGE Editora), livro de Edson Beú que chegará às livrarias da cidade na próxima semana. São apenas 58 páginas e 40 fotos de casas e personagens da Vila Planalto e da Metropolitana, duas igrejas, uma na Candangolândia e outra na Vila Planalto, e um hotel no Núcleo Bandeirante. ;Não sobrou quase nada. Mas na década de 1980, quando o Plano Piloto foi tombado, a Vila Planalto e a Metropolitana estavam inteiras, quase originais. Deveriam ter sido tombadas;, lamenta Beú.

Em meados dos anos 80, armado com uma Canon AE-1, um par de lentes e uma caderneta de anotações, o jornalista Edson Beú percorria as ruas de terra da Vila à procura de personagens para seu livro, já lançado, Expresso Brasília. Tocado pela diversidade e contundência das cores em contraponto à monotonia cromática do Plano Piloto, ele começou a fotografar as casas dos acampamentos.

A casa de seu Nagibe e dona Susana, no Acampamento Tamboril, na Vila Planalto, tinha a fachada mais vermelha que o vermelho da terra. Quem não pintava as paredes pintava janelas e portas, como no barraco de Martinho e dona Teolina, no Tamboril de Baixo, também na Vila. Quem conheceu o Hotel São Judas Tadeu, na 2; Avenida, no Núcleo Bandeirante, jamais se esqueceu do amarelo-ouro reluzente de suas paredes. Construído em 1956, o hotel foi demolido em meados da década de 1990, quando a arquitetura e o urbanismo modernos já estavam protegidos pelo tombamento.

Muitas das casas dos acampamentos foram construídas com esmero para abrigar engenheiros, técnicos e pessoal administrativo. A foto de uma residência no Acampamento Pacheco Fernandes mostra o que sobrou do conforto destinado à elite da construção: uma banheira suja de terra vermelha repousa do lado de fora.

Era pintada de branco a casa em que dona Joy e seu Rubem moravam na década de 1990 na Vila Metropolitana. As cores vivas ficavam no jardim, nas flores vermelhas, cor-de-rosa e no verde dos arbustos. Brasília era suburbana, interiorana, bem brasileira nos acampamentos ao redor do Plano Piloto.

Para publicar o As cores da memória, Beú voltou aos acampamentos com as fotos debaixo do braço. Queria encontrar as casas e os personagens. Encontrou uma casa e alguns personagens. ;Tudo o mais foi devastado;, ele diz. ;São apenas quarenta fotos, ;mas como doem;, poderíamos dizer junto com o poeta Drummond. São quarenta, mas valem por mil, tal é a beleza e os sentimentos entranhados em suas linhas, volumes e cores, como se fosse obra de um mestre pintor;, escreveu o cineasta Vladimir Carvalho, na contracapa do livro.

<i>Amarelo-ouro combinado com o verde faz destacar, ao longe, uma das casas de madeira que sobreviveu ao crescimento desordenado (segunda foto, de cima para baixo)</i>

<p class= No que sobrou dos tempos do acampamento dos primórdios de Brasília, cores como o azul-claro fazem bela composição com a natureza e revelam contrastes de uma história perdida pela depredação (quarta e quinta fotografias)" />Pesquisador apaixonado pela história da construção de Brasília, em especial pelas condições de trabalho e de vida dos candangos, Edson Beú já publicou um livro (Expresso Brasília) e defendeu uma dissertação de mestrado em história, Os filhos dos candangos: exclusão e identidade, na qual investigou o sentimento que os descendentes dos operários nutrem em relação a Brasília. ;Eles guardam ao mesmo tempo admiração e ressentimento. Admiração pela cidade e pelos pais e ressentimento pelo fato deles não terem sido devidamente reconhecidos pelo trabalho que realizaram;, conta Beú. As cores da memória podem não curar a mágoa, mas acolhem a saudade.


ONDE COMPRAR
As cores da memória ; Retratos da identidade candanga. De Edson Beú, LGE Editora, 60 páginas. Preço sugerido: R$ 35. O autor pretende distribuir exemplares às bibliotecas públicas da cidade e doar cotas para os personagens e as fontes que contribuíram para o livro. Não haverá lançamento. O livro foi publicado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura.

"Quando o Plano Piloto foi tombado, a Vila Planalto e a Metropolitana estavam inteiras. Deveriam ter sido tombadas"
Edson Beú, escritor





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