Cidades

Limitações não significam o fim do sonho de dançar

Para a professora Dayse Ribeiro Canotilho, limitações não significam o fim de um sonho. Na prática, ela não só aplica essa lição, como estende o aprendizado a outras pessoas que, portadoras de alguma deficiência física, aprimoraram talentos e desenvolveram a arte da superação

postado em 26/10/2009 08:41

Esta história é entrecortada de cenas. Como a vida.

Cena 1 ; Uma mulher caminha até a estação do metrô da 114 Sul. Lá, espera por uma moça que se locomove em cadeira de rodas. Ela vem de Samambaia. De longe, as duas se veem. O encontro é emocionado. Elas se abraçam. A moça na cadeira de rodas está particularmente feliz. E há motivos para isso. Daqui a uma hora, ela levitará. Voará como um passarinho, mesmo sem sair do lugar.Dayse acompanha a aluna Sabrina desde a estação do metrô até a Escola Parque da 313/314 Sul

Cena 2 ; A mulher coloca a moça dentro do carro, estacionado ali perto. Desmonta a cadeira, coloca-a no porta-malas e parte. Elas precisam chegar à 313/314 Sul, na Escola Parque. Lá, numa sala com espelhos, a magia vai tomar conta do lugar.

Cena 3 ; Perto das 20h, as pessoas começam a chegar. Umas vêm em cadeira de rodas. Outras, andando devagar. Algumas precisam de muletas. Não importa como chegam. Elas vêm. Duas vezes por semana, às terças e quintas-feiras à noite, todas estão ali. E, mesmo que ninguém imagine, com infinitas deficiências físicas que carregam (umas delas também tem um comprometimento cerebral), estão lá para dançar. Dançar? Isso mesmo. E o fazem da melhor forma que conseguem. Deslizam. Flutuam. E dançam. Simplesmente dançam.

Voltemos à estação do metrô. A mulher que vai buscar a moça da cadeira de rodas é uma professora de dança. A carioca da Tijuca Dayse Ribeiro Canotilho tem 37 anos, dois filhos, tornou-se brasiliense de coração e sonha em transpor limites. Ela própria carrega uma deficiência física congênita. Nasceu sem quatro dedos da mão direita, provavelmente do uso de talidomida (remédio para enjoos) pela mãe. A deficiência, entretanto, nunca foi empecilho pra nada. Dayse aprendeu que diferenças existem e devem ser encaradas. Foi isso que ela fez. Desde pequena, encantou-se pelas piruetas da romena Nadia Comaneci. Achava que também seria ginasta. Fez dança contemporânea e jazz. ;Não podia ouvir uma música que saía dançando. Assisti mais de dez vezes a filmes que falavam de dança. Vi Fama, Flashdance, Footloose, Os embalos de sábado à noite, O sol da meia-noite...;

Para a professora Dayse Ribeiro Canotilho, limitações não significam o fim de um sonho. Na prática, ela não só aplica essa lição, como estende o aprendizado a outras pessoas que, portadoras de alguma deficiência física, aprimoraram talentos e desenvolveram a arte da superaçãoViveu assim dos 10 aos 19 anos. Mas um dia teve que parar. A vida começou a lhe exigir emprego, renda mensal definida, cargos e encargos. As contas não queriam saber se a moça gostava de dançar ou não. Dayse virou servidora pública. A dança, porém, era sua grande paixão. ;Sonhava que estava dançando. Acordava chorando;, ela conta.

Filhos pequenos, luta diária, corre-corre, sobrevivência. A vida seguia. Os sonhos de Dayse nunca se dissiparam. Um dia, ela assistiu a um espetáculo de dança com cadeirantes, na Caixa Cultural. ;Era um grupo do Rio Grande do Norte. Fiquei absolutamente impressionada com o que vi. Pensei: ;Meu Deus, que coisa bacana, que atrevimento;. Sai dali maravilhada. E disse a mim mesma que era aquilo que queria fazer.;

Atrás do sonho
Louca para encontrar gente que aceitasse se juntar a ela no mesmo desejo, Dayse caçou na internet. Vasculhou orkuts. Descobriu pessoas com necessidades especiais que precisavam apenas de uma chance. Um motivo para mostrar que eram capazes, que podiam ir muito além dos passos de suas cadeiras de rodas. Fez contato. Recebeu resposta. Começava a transformação.

Há cinco meses, a professora montou o Movimento Dance, grupo de pessoas com os mais diferentes tipos de deficiência e que possuem o mesmo objetivo: dançar. Os treinos, duas vezes por semana, das 20h às 22h, são realizados num espaço cedido pela Escola Parque, na 313/314 Sul. Ninguém paga nada para participar. Um empresário ficou sensibiilzado com o projeto. Doou os espelhos da sala. Outro mandou confeccionar as camisetas que as 10 alunas usam nos ensaios.

Dayse ensina o que sabe. Explica cada movimento. Diz que suas meninas podem. A música invade o espaço. As cadeiras de rodas deslizam. O sorriso esconde o cansaço. O cansaço faz transpirar por todos os poros. O suor é vida que pulsa, desafia, chora, ri, renasce. Extasiada, a professora, que entende como ninguém o que é diferença e superação, comenta: ;O retorno disso tudo está dentro de mim;.A professora e o grupo em ação: momento mágico em que todos se sentem na mais perfeita sintonia

Sabrina de Souza Araújo, a moça de Samambaia que Dayse busca na estação do metrô, é puro contentamento. E comemora cada conquista. Aos 23 anos, ela descobriu que pode dançar, mesmo sentada numa cadeira de rodas. Até os 15 anos, era uma adolescente como outra qualquer. Andava de patins, bicicleta e passeava no shopping. De repente, foi perdendo o movimento das pernas. Caía com muita facilidade. E começou a sentir dificuldades na fala. Depois, parou de andar de vez. A família ficou preocupada. Angústia, bateria de exames, dezenas de médicos.

E o laudo arrasador: Sabrina tem ataxia de Friedreich, uma estranha e misteriosa doença caracterizada pela perda gradual de coordenação e progressiva degeneração do sistema nervoso. O nome da doença é uma homenagem ao neurologista alemão Nicholaus Friedreich (1825-1882), professor de medicina em Heidelberg, Alemanha, o primeiro a descrever o mal, em 1863. Sabrina viu seu mundo desmoronar. Deparou-se com a tristeza. A família foi fundamental no pedido de ajuda da menina. Amparou-a. A moça passou a jogar tênis, em cadeira de rodas, patrocinada por um programa voltado a deficientes. ;Mas o programa acabou e eu fiquei sem fazer nada;, ela diz.

Voo de felicidade
Para a professora Dayse Ribeiro Canotilho, limitações não significam o fim de um sonho. Na prática, ela não só aplica essa lição, como estende o aprendizado a outras pessoas que, portadoras de alguma deficiência física, aprimoraram talentos e desenvolveram a arte da superaçãoUm dia, na internet, Sabrina soube que haveria uma turma em que deficientes aprenderiam a dançar. Procurou mais informações. Encontrou-se com Marina Cardoso, 20 anos, que tem paralisia cerebral. Juntas, uma dando força à outra, decidiram que entrariam naquele grupo. A professora Dayse não via a hora de começar a fazer o que mais queria. De família humilde ; pai jardineiro e mãe auxiliar de serviços gerais ;, Sabrina não tinha como sair de Samambaia e chegar à Escola Parque sozinha. Dayse disse que isso não seria problema. Prometeu sempre buscá-la na estação do metrô. Promessa cumprida.

O cuidado da professora com a aluna em cadeira de rodas é de comover. Agradecida, Sabrina admite: ;Adoro dançar. Me sinto como se não tivesse nenhum problema físico. Me liberto;. E garante, cheia de esperança: ;Daqui a 100 anos, estaremos juntas;. Marina, linda, olhos vibrantes, sorriso encantador, chega trazida pela mãe. Com sapatilhas de bailarina, ela acompanha todos os passos que a professora ensina na aula de dança. E confessa, maravilhada: ;É a melhor coisa do mundo;.

Na mesma turma de Sabrina e Marina, está Maria de Jesus Borges, 49, que se recupera de uma doença genética progressiva e um recente derrame cerebral que lhe deixou sequelas. Com dificuldades para andar, Maria faz a maior parte dos exercícios sentada. É uma das mais animadas. ;Depois que comecei a dançar, tudo mudou na minha vida. Até a autoestima. Voltei a ter sonhos.; Ela sai da Vila Telebrasília, onde mora, e chega à Escola Parque. Vem de ônibus. ;Minha disposição aumentou. Me sinto uma menina.;

O mesmo entusiasmo contagiou Patrícia Morais, 41. Aos 4 anos, teve poliomielite. Restou uma sequela na perna esquerda. Sentiu todos os preconceitos na adolescência. Resolveu viver assim mesmo. Trabalhou como telefonista. Casou-se. Teve dois filhos e aprendeu a dançar, numa cadeira de rodas. ;É bom demais. Minha vida tava um paradão total. De repente, deu uma mexida.; E avalia a nova experiência: ;Aqui, a gente aprende a lidar com a limitação do outro. Não reclamos da vida, mas seguimos em frente;.

Pedaços de vida
Ir em frente. É o que Simone Soares, 38, decidiu, desde que o inesperado lhe aconteceu. Há 15 anos, ela se preparava para dar à luz a primeira filha. Estava feliz. ;Ela foi muito esperada;, lembra. Depois da cesariana, no Hospital Regional do Gama, Simone nunca mais andou. Sem perder a esperança, a mãe resolveu que ;andaria; com pernas emprestadas. ;Criei minha filha em cima de uma cadeira de rodas.; Simone teve mais um filho, jogou basquete, tirou carteira de motorista e aprendeu a dançar. Renasceu. ;Não é uma cadeira de rodas que limita a pessoa;, reconhece.

Um atropelamento em 2007 mudou para sempre a vida da biomédica Sandra Chaves de Medeiros, 29. De lá pra cá, ela teve que reaprender a viver ; e a andar. Amputou a perna esquerda. Ficou dois anos no Hospital Sarah, em reabilitação. Hoje, usando prótese, redescobre pequenos prazeres. É uma das alunas da professora Dayse. ;Minha vida deu um giro. Tudo mudou. Acho que fiquei mais sensível;, avalia.

Quinta-feira, 20h. Sabrina rodopia em sua cadeira. Marina sorri, extasiada com os movimentos que consegue fazer e com a alegria que se espalha naquela sala. Maria de Jesus vira adolescente. Patrícia enfrenta os medos. Simone se supera. Sandra, com sua perna artificial, ajuda a quem pode menos. Empurra a cadeira de rodas das amigas. Dayse? Chora de felicidade. Era tudo que queria na vida. Sonho concretizado. É mais que uma aula de dança. São pedaços de vida entrecortados de solidariedade. Esta é a história de uma gente que reaprendeu a viver.

Quer dançar também?
Se você é portador de algum tipo de deficiência e tem vontade de remexer o esqueleto, é só ligar para Dayse ; 9817-0319 ; ou Simone ; 9283-0580.

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