Cidades

Morador de rua que conquistou a vizinhança da 103/104 Sul, dado por morto há meses, ressurge

Luiz Vida volta ao lugar onde diz ter tido a visão de um "ônibus espiritual" que irá levá-lo ao encontro de Deus

postado em 29/10/2009 08:00
Luiz Vida perdeu mulher e seis filhos em um acidente de carro. Nunca mais foi o mesmoHá cinco meses, o boato tomou conta das imediações da 103/104 Sul. O povo dizia: ;Coitado, ele morreu. Foi ao encontro que tanto desejava. Ele só falava nisso, que tava aqui esperando o dia da viagem pra ficar perto de Deus;. No dia da morte, um taxista relatou, com o semblante arrasador, completamente enternecido: ;Você precisava ver. Era tanta ambulância do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) pra pegar ele. Tinha até bombeiro. Dizem que foi enfarte. Coitado, era uma pessoa boa. Não fazia mal a ninguém. Todo mundo na quadra gostava dele. Ele era tão querido que o pessoal ia até lá só pra ouvir as histórias e os conselhos que dava;.

O lugar ficou triste. E a casa do homem morto, vazia. Pairava no ar um quê de desolação. Havia três anos, ele se mudara pra lá. Era, sem dúvida, o morador mais conhecido da redondeza. Pelo menos o mais visível. O que via e era visto todos os dias. A qualquer hora. A barba grande e cinza, poucos dentes, o jeito de ermitão, o porte esguio e a magreza elegante eram seu cartão-postal. Mas o homem agora estava morto. Mortinho da silva.

A casa muito dificilmente seria habitada por alguém. Até porque não se tinha conhecimento de parente algum. Nunca por ali foram vistos filhos ou mulher. O homem tinha apenas amigos que fizera desde que pra lá se mudou. Todo dia, ele recebia visitas. Mas ninguém da família. E assim a casa, sempre ajeitada, recebia todos que por lá passassem. O nome dele? Luiz Vida. Era assim que se apresentava às pessoas. Assim as conquistou.

Luiz Vida morrera. Silêncio. Perplexidade. Os taxistas e os motoristas de ônibus ; gente que passava todo dia por ali e buzinava e acenava para o amigo ; estavam entristecidos. Mas a vida tinha que seguir, mesmo sem Luiz Vida. De fato, o tal encontro que tanto desejava tinha chegado. Finalmente, o homem de barba grande e jeito de ermitão fora ver Deus.

O tempo passou. Um dia, inesperada e assustadoramente, Luiz Vida voltou. Seria miragem? O povo se cutucou. Arregalou os olhos. Beliscou-se. O taxista enternecido quase bateu o carro. Era ele, sim. Do mesmo jeito, com a barba maior, o mesmo corpo esguio. A mesma fala. O mesmo sorriso. O mesmo andar elegante. Como? Seria milagre? O tal encontro com Deus não aconteceu? Só ele poderia explicar o que tinha havido. Naquela madrugada, quando o Samu foi resgatá-lo, Luiz Vida estava desacordado. Enfraquecido, desidratado, sem forças para andar ou falar, desmaiou dentro de casa.

Uma anemia profunda o debilitou de vez. Luiz Vida, se não fosse resgatado, muito provavelmente teria morrido. Naquela madrugada, o Samu o levou às pressas para o Hospital Regional da Asa Norte (Hran). O morador da 103 Sul recebeu sangue, tomou soro e, por 15 dias, recebeu alimentação adequada. Recuperou-se. Teve alta. Um amigo pastor, que conheceu na 103 Sul, preocupado com seu estado de saúde ainda fragilizado, convidou-o para passar uns dias na Primeira Igreja de Cristo, onde congrega, na 305/306 Sul. O amigo disse-lhe que ali havia um quarto onde ele poderia ficar até se sentir mais forte. Luiz Vida tentou resistir. Não gosta de incomodar. Acabou aceitando, porém, depois de muita insistência.

;Voltar a viver;
Luiz Vida fortaleceu-se. E acertou com o amigo da igreja: passaria o dia em casa, na 103 Sul, e à noite, apenas para dormir, voltaria para o lugar cedido, na 305. E eis que, ao voltar ao lugar onde as pessoas se acostumaram a vê-lo nos últimos três anos, a surpresa foi geral. Luiz Vida nunca morrera. Moradores da quadra, trabalhadores da redondeza ; porteiros, empregadas domésticas, zeladores ;, taxistas, motoristas de ônibus, policiais em viaturas todos se espantaram. Extasiaram-se com a presença daquele homem.

Há três meses, ele segue a mesma rotina. Permanece os dias na sua casa. Conversa com as pessoas. Recebe-as. Ele lhes conta suas histórias. Elas escutam. Quem passa na porta acena. Buzina. Sorri para quem sorri pra ele. Acena para quem acena. É assim o dia inteiro. Todos o conhecem. Luiz Vida continua esperando fazer a viagem que o levará a Deus. ;Ele diz que está aqui só esperando a hora e parece ter certeza disso. Vai embarcar num ônibus espiritual;, conta um desses amigos.

Manhã de terça-feira chuvosa. O Correio, finalmente, foi recebido por Luiz Vida. Há um ano e quatro meses, ele não aceitou dar entrevistas. Fotografia, nem pensar. À época, conversou, contou alguma coisa, mas não autorizou que sua história fosse publicada. E justificou: ;Não vejo motivos pra aparecer em jornal. Minha vida talvez não seja tão interessante assim;. O tempo, inexoravelmente, passou. O boato sobre a morte de Luiz Vida ecoou. Uma pena. Não se contou a história do morador cheio de gentilezas da 103 Sul.

À espera do encontro divino: visão desse dia ele teve num momento de extrema decadência de vida, no mesmo lugar que adotou e agora chama de Parada dos MilagresDesta vez, Luz Vida não resistiu em receber a reportagem. Convidou para entrar. Sentar-se na sua casa com vista para a rua ; o barulhento eixinho W, aquele à altura das quadras 100. E, logo de cara, disse: ;Não há explicação pra que eu pudesse voltar a viver. Sou um milagre;. Milagre? Ele passa a mão sobre a barba e responde, explicando: ;Era um homem completamente doente. Me tornei alcoólatra, drogado, viciado em cocaína, crack, maconha e todas as drogas que você possa imaginar. Me perdi de mim;.

Luiz Vida conta que se desencontrou dele mesmo por desencanto. ;Perdi, num só dia, minha mulher e meus seis filhos. Morreram num acidente de carro. Fiquei sem referência. Acabei na rua.; De rua em rua, porre em porre, drogas em drogas, orverdoses, o mineiro de Diamantina criado em Belo Horizonte parou em Brasília. ;Gastei 20 anos pra chegar da Rodoferroviária até a 103 Sul. Quando desembarquei, encontrei um grupo de moradores de rua, todos mendigos. Lá mesmo fiquei;, conta. ;Até hoje eu não conheço bem Brasília. As drogas me tiraram do ar;, diz o homem que trabalhava em restaurante, tinha casa e sonhava ver os netos nascerem.

Parada dos milagres
Na terra de JK (;meu conterrâneo de Diamantina;, ele diz, com certo orgulho), o andarilho pária só aumentou o vício. ;Fui ao fundo do poço. Vivia da mendicância. Tinha dia que achava que não acordaria.; Um dia, há três anos, completamente alucinado e doente ; muito doente ;, Luiz Vida parou na 103 Sul. Nunca mais saiu. ;Não aguentava mais andar. Tava debilitado. Ia morrer;, constata. Os moradores viram aquele homem estendido. Chocaram-se. Assim foram dias e dias. Até que Luiz Vida se deu conta de onde estava. Assustou-se com o corpo em frangalhos. ;Foi quando recebi uma mensagem. Meu Pai (refere-se a Deus) me disse que ficasse aqui e o esperasse. Eu faria a viagem com Ele. Fiz as pazes com Deus. Durante 20 anos, senti ódio dele.;

Naquele dia, o andarilho errante se batizou de Luiz Vida. ;Parei de beber no mesmo dia e nunca mais me droguei. Mudei pra sempre;, revela. Passou, então, a falar de Deus. ;Não sou religioso. Creio em Deus, o meu Pai. Nem preciso viver rezando pra que Ele saiba que tô com ele.; Aos poucos, o olhar desconfiado ; e até receoso ; dos vizinhos foi mudando. Uma gente ; jovens, adultos, idosos e até crianças ; passou a visitá-lo. Ouve suas histórias. Entra na sua casa ; varrida todo dia com zelo. Senta-se. Algumas levam comida. Outros, roupas. Quando ganha muito, ainda divide com quem tem menos.

;Ele tem amigos em todos os blocos;, conta o porteiro de um deles, André Francisco Pires, 46. E emenda: ;O Luiz é respeitador e de confiança. Um cidadão do bem. Até as senhoras da quadra visitam ele;. Uma moradora, que pediu pra não ser identificada, contou: ;Às vezes, vou lá e converso por horas com ele. Já pedi até conselhos. Ele tem gentileza;. Outro porteiro, Daniel Santana, 39, comenta: ;Se a gente fosse contar as pessoas que param pra conversar com ele, não ia ter como fazer. Ele virou um personagem da quadra;.

Início da tarde chuvosa de terça. Na sua casa, de calça cinza, camisa com a estampa de Jesus Cristo e sandália de couro, Luiz Vida, que jura nunca ter ido à escola, lia O Jesus que nunca conheci, de Philip Yancey, livro que traz uma perspectiva nova e diferenciada da vida e da obra de Cristo ; ensinos, milagres, morte e ressurreição. ;Leio, releio, é um livro muito interessante. Uma nova visão sobre o que já se sabe. Ganhei de presente de um amigo policial que mora na Asa Norte. Ele passou aqui e me deu;, conta, orgulhoso. Pergunto se realmente ele é feliz. Esboçando sorriso de quem tem certeza do que diz, o homem de 50 anos responde: ;Cada instante da minha vida é motivo de alegria e felicidade. Acho que sou merecedor;. E explica: ;Não conheço ninguém que tenha passado o que passei e tenha sobrevivido;.

Em tempo: a casa de Luiz Vida ; além do banco de concreto, tem dois travesseiros, um colchão de espuma forrado com roupa limpa e uma mochila pra guardar seus objetos pessoais ; é um ponto de ônibus onde eles não param mais. No passado, era abrigo dos zebrinhas. Cuidadoso, ele deu nome à sua casa sempre ajeitada, seu porto seguro no meio de uma avenida movimentada: Primeira Parada dos Milagres de Brasília. ;É isso que sou: um milagre de Deus. E minha casa é um lugar feito de milagres;, extasia-se.

Na 103 Sul, quadra nobre, lugar de gente elegante, servidores públicos de alto escalão, um morador de rua com cara de filósofo, andar de lorde, jeito introspectivo e discurso espiritual ; a viagem marcada para o encontro com Deus se aproxima, ele garante ; tornou-se a pessoa mais conhecida do lugar. O nome dele? É sempre bom repetir: Luiz Vida.

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