Cidades

Sarney mora no Setor O de Ceilândia

postado em 31/10/2009 10:33

Antônio Lima há muitos anos não é chamado pelo próprio nome, e sim pelo do senador famoso. O bigode é parecido, mas ele garante que as semelhanças terminam aí

Sarney mora em Ceilândia. Que conversa é essa, minha gente? Sim, o Sarney de bigode inconfundível vive e trabalha no Setor O. O homem de andar ligeirinho e conversa boa virou uma das figuras mais conhecidas do pedaço. Estabeleceu-se numa esquina da região. De qualquer lugar da cidade, quando se pergunta onde fica o estabelecimento de sua propriedade, o povo indica com precisão. Basta seguir a dica. Tiro e queda. Sarney está ali, há duas décadas. O nome não deixa dúvida. De longe, se vê, em garrafais azuis: Bar do Sarney. Bar de quem? Dele mesmo, do Sarney.

É ali, minha gente, numa ;esquina; da QNO 5, no coração do Setor O, que um homem nascido no Ceará, criado no sertão do Piauí e desde 1974 morando em Brasília, tornou-se o Sarney de Ceilândia. ;A primeira vez que entrei num carro tinha 20 anos, foi quando embarquei no ônibus que me trouxe até aqui;, conta. Sacolejou três dias e três noites até chegar à terra de JK. ;Quando desci do ônibus, levei um susto. Achei tudo muito estranho;, ele lembra.

Miudinho, bigode grande, jeito destemido (há quem veja nele muita semelhança com o seu xará, o senador), Antônio Lima é dessa gente que deixou o Nordeste atrás do sonho de prosperidade. Aqui, o homem que só estudou até o primário, antes de virar dono de bar, foi servente de obras, auxiliar de limpeza, motorista de caminhão e taxista. ;A vontade de todo nordestino, quando deixa sua terra, é mudar o destino. Corri atrás de uma vida melhor;, admite.

Batismo
O menino que trabalhava na roça no Piauí venceu na Ceilândia de sotaque nordestino. Desde 1989, montou seu bar. O nome? Pra ser diferente, dar um ;tchan; naqueles que havia na redondeza, Antônio inovou. ;Coloquei o nome de Frente a Frente. Achei bonito demais;. Em menos de um ano, ninguém mais chamava o lugar de Frente a Frente. ;O povo passou a me achar a cara do ex-presidente e dizia: ;Vamos lá no bar do Sarney;. Era a referência da quadra;, conta. Nunca mais ninguém mais chamou o estabelecimento de Antônio pelo nome com que fora batizado.

Politicamente correto: fumar e vender álcool para menores, nem pensarDemocraticamente, a pedido do povo, virou Bar do Sarney. E ponto. Hoje, nos quatro cantos do Setor O, não há uma criatura que não o conheça. E Sarney, o de Ceilândia, sente-se todo orgulhoso. Sempre foi fã do Sarney, do Maranhão. E não é de hoje: ;Desde rapazinho, eu gosto do Sarney. Nunca vi ele de perto, mas sempre admirei a trajetória política dele. Acompanho as conversas desde o tempo em que ele era governador do Maranhão;.

A coisa é tão séria que exceto a mulher, que o chama de ;meu velho;, ninguém nunca mais se dirigiu a ele pelo nome de Antônio. ;Meus irmãos só me chamam de Sarney. Os fregueses, os amigos, até os credores, quando vêm receber pagamento e não me encontram, dizem: ;Vim tratar com o seu Sarney. Só falo com ele;. O apelido pegou mesmo...; Sarney, o de Ceilândia, é gente de fino trato.

O Bar do Sarney é uma casa de respeito. ;É um ambiente familiar. Vem a família do Setor O. Tem hora pra abrir e fechar. Abro às 8h e fecho às 10 da noite. A casa pode estar cheia de gente, mas eu fecho mesmo;, avisa. E explica: ;Quem tá no bar até às 22h certamente já está bêbado. Quem chega depois tá pior. Aí, é impossível controlar as emoções e os ânimos das pessoas;. E mais um detalhe, explica o Sarney de Ceilândia: ;Não vendo cigarro e é proibido fumar aqui dentro. Quem quiser fumar vai pra calçada. Respeito é bom pra todos;.

Por todas essas regras adotadas ; e cumpridas ; pelo estabelecimento, Sarney se orgulha de sua casa ser um ambiente onde nunca houve confusão nem escândalos, ao contrário do Senado, onde seu xará é presidente. ;Fico muito feliz por isso. Lutei pra fazer um ambiente de respeito. Acho que consegui.;

Seca pimenteira
O bar é bem colorido. Tem paredes verdes, amarelas e vermelhas. Piso de ardósia. Dois ventiladores. Na parede, um telão para assistir a jogos de futebol. A decoração é simples, nada de especial. Fotos de clientes e um bar com bebidas quentes à mostra. ;Só não vendo cachaça enraizada... Isso atrai pé inchado. E aqui eu não quero eles por perto;, avisa. Fiado? Nem com reza. Só uma exceção: para os fregueses muito antigos. Quatorze mesas recebem a clientela. E tudo ali é familiar. A cozinheira é a mulher dele, que conta apenas com uma ajudante. Os gerentes são os dois filhos ; Kléber, 32, e Cleiton, 29 ;, que, na ausência de Sarney, administram a casa.

Para ter a certeza de que nenhum olho-grande possa secar a fonte de prosperidade do bar, o crédulo Sarney ; igualzinho ao do Senado, que também tem lá suas mandingas ; não perdeu tempo: colocou um vaso com uma planta de seca pimenteira bem à mostra. ;É o diabo que vai trazer mau olhado pra cá;, brinca. E bate na madeira. Pelo sim, pelo não, o Sarney do Piauí tem dado certo na vida. Pelo menos ainda não voltou pro Nordeste desiludido.

Clientela assídua: o aposentado Sávio Borges frequenta o ponto de encontro desde a inauguraçãoSarney não bebe nem fuma. ;O cabra que mexe com bar não pode beber, nunca. Já pensou o dono do boteco e os fregueses tudo bêbado? É confusão na certa.; É católico e vai à missa. Até na igreja o povo o chama pelo apelido famoso. ;É na feira, no mercado, na padaria, andando na rua. Aonde eu vou, escuto a gritaria: ;Ê, Sarney!”. O homem miudinho de bigode grande e branco gosta disso. ;De tanto o povo achar que me pareço com o senador, eu acabei acreditando;, reconhece. Mas cutuca: ;Eu não pinto o bigode nem o cabelo. O senador, sim;.

O dono do bar de Ceilândia é fã de carteirinha do presidente do Senado. ;Antes mesmo dessa ruma de gente me chamar de Sarney;, apressa-se em explicar. Quando era motorista de ônibus, levou uma excursão para o Maranhão. ;Fui até São Bento, onde ele nasceu, e a Pinheiro, onde se registrou.; E confessa: ;Tinha vontade de conhecer ele e apertar a mão do senador;.

E os últimos escândalos no Senado que quase derrubam o presidente-escritor-imortal dos Marimbondos de fogo? Ah, o Sarney piauiense bate pé. Minimiza todas as acusações atribuídas ao maranhense de bigode inconfundível. ;Bobagem!” E vai além: ;Quando eu vi ele dizendo na televisão que nenhum ali no Senado tem moral pra acusar ninguém, que todos eram iguaizinhos, eu disse: ;Esse não cai de jeito nenhum;. E o homem não caiu. Ele é forte;. De Sarney pra Sarney...

Quando pergunto sobre a passagem de Sarney, o bigodudo do Maranhão, pela presidência da República, o Sarney de Ceilândia, que se confessa viciado em ler notícias na internet, devolve: ;O Senado e a Câmara atrapalharam ele demais. O Lula, além de ter muita sorte, pegou um país melhor, estabilizado. Aí, é fácil governar...;. Dá-lhe, Sarney!

De pai pra filho
Há 20 anos, passaram pelo Bar do Sarney várias gerações. ;Vinha o pai, hoje vem o filho e o neto. Ou seja, tenho três gerações que frequentam a minha casa;, orgulha-se. Sávio Borges, 60, militar reformado, vai ao estabelecimento daquela esquina do Setor O há duas décadas. ;O que gosto daqui é que não vem qualquer pessoa. Os fregueses são selecionados. O Sarney é simpático, atende bem, tem bom papo. Tenho amigos que se mudaram daqui, moram longe, mas continuam vindo;, conta Sávio. O motorista Cleiton José Carlos, 35, rasga elogios: ;Não é pra qualquer um beber no Bar do Sarney;.

Hoje, sábado, a coisa ali pega fogo. É o dia em que o bar mais lota. ;Quando dá meio-dia, a casa tá lotada. O povo vem comer a feijoada, o prato mais famoso, mas também tem chambaril;, diz Sarney. As mesas são disputadíssimas. ;De tão boa, o cabra come tanto que passa três dias sem querer ver comida;, exagera um freguês. Hoje, aos 55 anos, esse nordestino que construiu uma identidade com Ceilândia tornou-se homem de respeito. ;Quando cheguei, passei necessidade. Mas tive a chance de trabalhar muito. Criei meus filhos, dei dignidade à minha família, comprei minha casa, montei meu negócio e tô tocando minha vida...;

Há 20 anos, um homem mirradinho fez do seu bar um cartão de visita da nordestina Ceilândia. ;O povo diz que o estabelecimento deveria virar patrimônio cultural do Setor O;, conta ele, contentíssimo. Então tá... Nessa mesma Ceilândia, Sarney ; o cearense criado no Piauí ; jamais será ameaçado de deixar o poder. E nem será preciso bater tambor em Codó (município maranhense, distante 290km de São Luís, que ganhou fama pelos terreiros de candomblé). Nem jurar pela história. Nem pela biografia. Saravá, meu pai!

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