Maria de Lourdes Benevides Santos. Esqueçam esse nome todo. A partir de agora, chamem-na apenas de Lourdinha. É assim que se tornou conhecida. Assim construiu ; anonimamente ; uma saga. Ouvir Lourdinha é como viajar. Mesmo que não se conheça o rumo, não se saiba exatamente onde essa caminhada vá parar, é bom embarcar nesse trem, nesse pau de arara, nessa boleia de caminhão ou na asa desse bicho que voa. E deixar que ela, a dona da história, conduza o destino. A vida inteirinha, Lourdinha tomou rédea de tudo. É uma mulher ímpar. Preparem-se: a viagem está só começando.
Água Verde, quase pertinho de Fortaleza. Era 20 de novembro de 1927. Nascia a primeira filha (dos outros nove que viriam depois) de Augusto, o telegrafista da cidade, e de Estela, uma dona de casa. Festa na redondeza. A menina chorou forte. Choro de menina valente. A família crescia ano a ano. Estela pariu 10 filhos. Augusto se desdobrou em 20 para dar conta de tanta boca.
Lourdinha, a primeira, logo foi estudar na capital do Ceará. Contava perto de 13 anos. ;De trem, num
instantinho, a gente chegava a Fortaleza;, lembra. E lá se foi a filha do telegrafista e da dona de casa para um colégio interno de freiras. Augusto queria a filha prendada. O tempo corria. A menina quase moça de Água Verde se encantava com as descobertas da escola. A madre superiora falava de Deus, pecados mortais, céu e inferno. Lourdinha escutava, espiava, matutava. Sempre foi curiosa.
Um dia, de folga na escola, foi passear com uma prima. Programa: ida ao salão de beleza. De repente, passou na porta um rapaz de 22 anos. Ele olhou para Lourdinha, que acabara de completar 14 anos, e lhe disse, num atrevimento só: ;Vou me casar com você, menina!” A menina-moça tremeu. ;Fiquei assustada com aquilo. Nunca tinha namorado.; O passeio findou. Lourdinha voltou para o internato com as pernas bambas. O moço destemido, que se chamava Walmir de Souza Santos, descobriu onde a menina bonita estudava. Passou a rodear o lugar. E começou o namoro.
A família de Lourdinha, quando soube do namoro, deu pinote. O pai ralhou. A mãe tentou contemporizar, mas também não estava de acordo. O pecado do rapaz? Era motorista de caminhão. Contra todos, a determinada Lourdinha seguiu com o namoro. E mais uma surpresa: a menina do colégio de freiras e o caminhoneiro marcaram a data do casamento. É bom lembrar que toda essa história se passa numa Fortaleza do começo dos anos 40.
Mas, enfim, contra tudo, todos, o padre e o bispo, a filha mais velha de Augusto se casou com o primeiro e único homem que amou na vida. Ela tinha 14 anos. O noivo, 22. ;Minha família não aceitou porque achava que ele não me daria o conforto que tinha em casa;, ela conta. O casamento, feito em Fortaleza, foi simplezinho. Nada de vestido de noiva, tampouco véu e grinalda. ;Quando o povo chegava na cerimônia, perguntava pra mim: ;Menina, me mostra onde tá a noiva?;. Era muito miudinha, tinha cara de criança;, ela conta.
Nova vida
O motorista de caminhão não brincou em serviço. No ano seguinte, ao completar 15 anos, a barriga da menina empinou. ;Todo ano ganhava filho;, repara. A barriga cresceu 24 vezes. Isso mesmo: a barriga da menina do colégio de freiras espichou 24 vezes. ;Mas sete eu perdi antes de nascer.; Dos 15 aos 40 anos, Lourdinha engravidou todos os anos. Dezessete vingaram. Quinze estão vivos. ;Aos 40 anos, quando tive minha última filha, o médico resolveu ligar minhas trompas. Disse que poderia ter mais filhos. Meu Deus do céu...;
Lourdinha virou mãe e dona de casa. Ele, no caminhão, labutava com fretes e viagens pelo interior. Mas os boatos sobre a construção de uma nova cidade, muito longe dali, pipocavam. Walmir começou a vislumbrar uma vida melhor para a família.
E partiu. Era junho de 1959. Veio sozinho, pra ver que lugar era esse. Meses depois, no fim de 1959, ;num avião que mais parecia um pau de arara;, Lourdinha chegou com quatro filhos nascidos. Na barriga, mais um. ;Quando desembarquei, me perguntei: ;Meu Deus, o que vim fazer aqui? Só tinha terra e gente vermelha de barro. Os pés rachavam que minavam sangue...;
Do aeroporto, Lourdinha foi direto para um alojamento na 409 Sul. Num acampamento na 206, montou uma birosca, para vender lanche aos operários que construíam a cidade. Era a única mulher no meio de milhares de homens. Andava armada, para se proteger de qualquer engraçadinho. Tinha uma pontaria melhor do que de homem. Nas madrugadas escuras e improváveis do cerrado, virou parteira. ;Até o médico mandava as mulheres me procurarem quando chegava a hora.; Walmir comprou um caminhão e carregava material de construção.
Brasília, finalmente, foi inaugurada. O canteiro de obras por todos os lados vive um dia de festa. Naquele mesmo ano, nasceu o filho Juscelino. ;Foi nossa homenagem ao presidente que andava no meio do povo, que apertava a mão de operário. Era um homem honesto, batalhador. Depois dele, só apareceu abacaxi;, cutuca Lourdinha. No seu caminhão pau de arara, Walmir decidiu que faria viagens de Brasília a Fortaleza, para deixar e buscar operários. Lourdinha não contou conversa. Aprendeu a dirigir com Tarcísio, o filho mais velho (hoje com 67 anos). Largou os bolos e doces. Virou caminhoneira destemida. Pé no mundo.
Companheiro eterno
Foram longas e muitas as viagens. ;Eu queria correr e o Walmir não deixava. Toda vez era assim.; Em um dos trechos, a única passagem era uma ponte estreita, com dois pedaços de madeira. ;Era muito perigoso. Mandava o povo descer e dizia: ;Se cair, só morre eu;. Nunca caiu;, conta, às gargalhadas. Assim, na peleja, Lourdinha e Walmir construíram a vida em Brasília. Viram tudo nascer. Sonharam, choraram e riram juntos. Moraram na Asa Sul, Taguatinga, Sobradinho, Valparaíso e mais recentemente na Granja do Torto. A família se agigantou. Só netos são 57. Bisnetos? 56 . Tataranetos? 3, até agora.
Viúva há 17 anos ; depois de meio século de união ;, a espetacular Lourdinha ; mulher de 1,50m ; lembra-se do começo de tudo e, claro, do marido, o companheiro eterno. ;É tanta história que se for contar tudinho tu não vai sair mais daqui, meu filho;, brinca. Nesse instante, os olhos lacrimejam: ;Walmir foi meu primeiro e último amor. Era alucinada por ele. Homem nenhum me suportaria como ele me suportou. A última palavra era a minha. Resolvia tudo. Sou sagitariana. Era danada, decidida, estava além do meu tempo;.
Manhã de quarta-feira, sol tímido na região do Torto. Lourdinha refaz o passado. Conta histórias inesquecíveis. Revê fotos antigas. Mostra a família ; como num filme. Lembra-se do dia em que, lá no Ceará, recém-casado, Walmir quis dar uma de solteiro. Não conhecia ainda a menina que tirara da escola de freiras. E não é que ele arrumou uma amante?
Barriguda, quase parindo mais um da ;ruma de filhos;, Lourdinha soube da traição. Não perdeu tempo. Descobriu o endereço da sirigaita, fez um chicote de fios elétricos e foi à casa da dita. Deu-lhe uma surra daquelas. A amante? Sumiu nesse mundão de meu Deus. Walmir? ;Ficou uma seda. Nunca mais na vida olhou pra mulher nenhuma;, entrega a miudinha, devota fervorosa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Em 28 de novembro, Lourdinha completará 82 anos. Motivo de celebração. Indago, no fim da conversa, se ela faria tudo de novo. Ela se empina na cadeira de balanço, passa a mão sobre o cabelo cinza (;nunca pintei;, orgulha-se) e responde: ;Tudo igualzinho. Minha vida inteira foi a disposição de enfrentar as dificuldades. Venci o impossível. Nunca tive medo de encarar nada. Hoje, amo Brasília. Parece que nasci aqui;.
A história da mulher que se agarrou à vida ; transgrediu, rompeu preconceitos, casou-se contra a vontade da família, empinou a barriga 24 vezes, pariu 17 filhos, chegou aqui quando nada existia, tornou-se pioneira, virou doceira, depois caminhoneira, ajudou o marido a erguer-se e cuidou dos filhos com zelo de mãe ; não caberia numa página de jornal. Daria um livro. Desses que, de tão bom, o leitor reza para não chegar ao último capítulo. Lourdinha é porreta, da forma mais emocionada que a palavra puder traduzir.
Conheça a história de Dona Maria de Lourdes, pioneira da capital, em videoreportagem