postado em 06/11/2009 08:00
Trazer bebês ao mundo é a especialidade de Cacilda Bertoni, 90 anos. Ela foi a primeira enfermeira a fazer partos na capital da República, em 1957. Não havia hospital e o procedimento era realizado em acampamentos, dentro de barracos sem água nem luz, antes da inauguração de Brasília. Cacilda, que nasceu em Piracicaba (SP), começou a trabalhar aqui quando o lugar ainda era só terra vermelha misturada ao sonho dos candangos e de Juscelino Kubitschek de ver a cidade nascer. A enfermeira sempre se lembrará do mês de dezembro daquele ano, quando ela desceu de um caminhão na Cidade Livre sem saber o que o futuro lhe reservava, aos 38 anos, com marido e os dois filhos pequenos ; o terceiro nasceria anos depois. Durante o curso de enfermagem no Rio de Janeiro, Cacilda, ainda moça, não imaginava que, por suas mãos, viriam ao mundo mais de 800 crianças.Hoje, Cacilda fala com saudades dos tempos em que os maridos das gestantes a tiravam de casa no meio da noite para realizar os partos. Transporte até os acampamentos dos operários que construíam Brasília, só de jipe ou caminhão. ;Não era nada confortável, nem mesmo seguro;, lembra Cacilda. Para não correr o risco de ser levada de casa por homens mal intencionados, a enfermeira combinava com a paciente grávida uma senha. Quando batesse à porta de Cacilda para conduzi-la até o local do nascimento, o marido deveria dizer o nome dele e o da esposa. Com antecedência, a mulher descrevia o sujeito a Cacilda, para garantir que era a pessoa certa. ;Primeiro, meu marido olhava pela fresta da porta. Depois vinha correndo me dizer: ;É um sujeito negro e grandão;. Ou então: ;Pelo sotaque é um nordestino e é baixinho;. Só depois que tinha certeza é que eu entrava no veículo;, relata.
Ela se orgulha de nunca ter perdido um bebê que ajudou a nascer. ;Havia complicações, não tínhamos água encanada, energia elétrica ou hospitais. Os partos ocorriam dentro de barracos;, diz. ;Mas mesmo assim, nunca trouxe ao mundo uma criança morta ou com problemas decorrentes do momento do nascimento;, completa. Quando saía de casa para auxiliar as mães, Cacilda levava apenas água fervida, gilete (para depilação) e remédios. O restante ficava por conta da experiência anterior como enfermeira no Amazonas e do dom de fazer nascer meninos e meninas saudáveis, os primeiros brasilienses. Outra parteira, porém leiga, já fazia esse trabalho no DF. ;Mas, com formação de enfermeira, eu fui a primeira;, diferencia, lembrando: ;Tinha serviço de sobra para nós duas;.
Histórias
Cacilda, assim como a parteira leiga, cobrava pelos serviços. ;Afinal, não era possível trabalhar dia e noite sem cobrar nada e ainda cuidar de uma família;, explica. Mas quem tinha menos condições financeiras pagava um valor menor. ;Já fiz parto de graça, mas eram exceções. Sempre cobrei um preço justo, de acordo com a realidade de cada um;, garante. Das 800 crianças, cinco lhe foram confiadas como afilhadas. Ela perdeu o contato com a maioria dos casais que atendeu. ;Imagino que devo passar por homens e mulheres na rua sem saber que fiz o parto deles;, acha graça. ;Mas fico chateada com os que sumiram. Mantenho contato com meus afilhados e já fui até madrinha de casamento de alguns. Já pensou que orgulho ser madrinha duas vezes? É uma honra!”
Entre as histórias preferidas da parteira, está a de um casal formado por uma argelina e um espanhol que moravam em Brasília logo no início da construção da cidade. A mulher, grávida, bateu à porta da casa de Cacilda e o parto teve de ser feito ali mesmo. ;Mandei meu marido sair e passear com as crianças, para elas não verem a confusão. O marido da grávida foi trabalhar. Ficamos eu e minha vizinha, que era professora, fazendo o parto. Depois, a família da mulher ainda ficou três dias hospedada lá em casa. Fiz canjica para ela ter leite e tudo mais;, conta.
Saudade
A enfermeira trazia ao mundo filhos de gente rica a pessoas muito pobres. ;Tudo com a mesma sensação de responsabilidade;, destaca. Em certas ocasiões, chegou a fazer nascer três crianças em uma mesma noite. ;Eram filhos de deputados, engenheiros e operários, todos com a mesma qualidade de serviço;, diz. Cacilda sente saudade do respeito entre as pessoas e da honestidade que, segundo ela, era regra em Brasília. ;Andei em todos os acampamentos da cidade e ninguém nunca me desrespeitou. As pessoas sempre pagavam as contas em dia. Ninguém roubava nem matava com a facilidade que as pessoas o fazem hoje;, alega.
Em 1961, Cacilda deixou de realizar partos para chefiar a equipe de enfermagem do recém-inaugurado Hospital Distrital. Trabalhou também na Universidade de Brasília (UnB), como enfermeira no ambulatório. ;Eu estava lá quando os militares invadiram a universidade. Foi tenso. Ajudei a esconder estudantes no banheiro;, recorda.
Mas, mesmo depois do fim da carreira como parteira, as pessoas continuaram a bater na porta da casa de Cacilda para pedir ajuda durante muito tempo. ;Fiz o parto de uma senhora japonesa, antes dessa época. Depois, ela teve outro filho, auxiliada por um médico. Mas o bebê nasceu morto. Ela não acreditou no doutor e me chamou para constatar se o filho estava vivo ou não. Infelizmente, o médico acertou. Só depois da minha palavra ela acreditou;, afirma. Com 90 anos completados em julho, Cacilda dá a receita da lucidez e da longevidade. ;Basta trabalhar muito;, garante.