postado em 06/11/2009 08:00
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Hoje, Cacilda fala com saudades dos tempos em que os maridos das gestantes a tiravam de casa no meio da noite para realizar os partos. Transporte até os acampamentos dos operários que construíam Brasília, só de jipe ou caminhão. ;Não era nada confortável, nem mesmo seguro;, lembra Cacilda. Para não correr o risco de ser levada de casa por homens mal intencionados, a enfermeira combinava com a paciente grávida uma senha. Quando batesse à porta de Cacilda para conduzi-la até o local do nascimento, o marido deveria dizer o nome dele e o da esposa. Com antecedência, a mulher descrevia o sujeito a Cacilda, para garantir que era a pessoa certa. ;Primeiro, meu marido olhava pela fresta da porta. Depois vinha correndo me dizer: ;É um sujeito negro e grandão;. Ou então: ;Pelo sotaque é um nordestino e é baixinho;. Só depois que tinha certeza é que eu entrava no veículo;, relata.
Ela se orgulha de nunca ter perdido um bebê que ajudou a nascer. ;Havia complicações, não tínhamos água encanada, energia elétrica ou hospitais. Os partos ocorriam dentro de barracos;, diz. ;Mas mesmo assim, nunca trouxe ao mundo uma criança morta ou com problemas decorrentes do momento do nascimento;, completa. Quando saía de casa para auxiliar as mães, Cacilda levava apenas água fervida, gilete (para depilação) e remédios. O restante ficava por conta da experiência anterior como enfermeira no Amazonas e do dom de fazer nascer meninos e meninas saudáveis, os primeiros brasilienses. Outra parteira, porém leiga, já fazia esse trabalho no DF. ;Mas, com formação de enfermeira, eu fui a primeira;, diferencia, lembrando: ;Tinha serviço de sobra para nós duas;.
Histórias
Cacilda, assim como a parteira leiga, cobrava pelos serviços. ;Afinal, não era possível trabalhar dia e noite sem cobrar nada e ainda cuidar de uma família;, explica. Mas quem tinha menos condições financeiras pagava um valor menor. ;Já fiz parto de graça, mas eram exceções. Sempre cobrei um preço justo, de acordo com a realidade de cada um;, garante. Das 800 crianças, cinco lhe foram confiadas como afilhadas. Ela perdeu o contato com a maioria dos casais que atendeu. ;Imagino que devo passar por homens e mulheres na rua sem saber que fiz o parto deles;, acha graça. ;Mas fico chateada com os que sumiram. Mantenho contato com meus afilhados e já fui até madrinha de casamento de alguns. Já pensou que orgulho ser madrinha duas vezes? É uma honra!”
Entre as histórias preferidas da parteira, está a de um casal formado por uma argelina e um espanhol que moravam em Brasília logo no início da construção da cidade. A mulher, grávida, bateu à porta da casa de Cacilda e o parto teve de ser feito ali mesmo. ;Mandei meu marido sair e passear com as crianças, para elas não verem a confusão. O marido da grávida foi trabalhar. Ficamos eu e minha vizinha, que era professora, fazendo o parto. Depois, a família da mulher ainda ficou três dias hospedada lá em casa. Fiz canjica para ela ter leite e tudo mais;, conta.
Saudade
A enfermeira trazia ao mundo filhos de gente rica a pessoas muito pobres. ;Tudo com a mesma sensação de responsabilidade;, destaca. Em certas ocasiões, chegou a fazer nascer três crianças em uma mesma noite. ;Eram filhos de deputados, engenheiros e operários, todos com a mesma qualidade de serviço;, diz. Cacilda sente saudade do respeito entre as pessoas e da honestidade que, segundo ela, era regra em Brasília. ;Andei em todos os acampamentos da cidade e ninguém nunca me desrespeitou. As pessoas sempre pagavam as contas em dia. Ninguém roubava nem matava com a facilidade que as pessoas o fazem hoje;, alega.
Em 1961, Cacilda deixou de realizar partos para chefiar a equipe de enfermagem do recém-inaugurado Hospital Distrital. Trabalhou também na Universidade de Brasília (UnB), como enfermeira no ambulatório. ;Eu estava lá quando os militares invadiram a universidade. Foi tenso. Ajudei a esconder estudantes no banheiro;, recorda.
Mas, mesmo depois do fim da carreira como parteira, as pessoas continuaram a bater na porta da casa de Cacilda para pedir ajuda durante muito tempo. ;Fiz o parto de uma senhora japonesa, antes dessa época. Depois, ela teve outro filho, auxiliada por um médico. Mas o bebê nasceu morto. Ela não acreditou no doutor e me chamou para constatar se o filho estava vivo ou não. Infelizmente, o médico acertou. Só depois da minha palavra ela acreditou;, afirma. Com 90 anos completados em julho, Cacilda dá a receita da lucidez e da longevidade. ;Basta trabalhar muito;, garante.