Cidades

Primeira transexual brasiliense a chegar a um doutorado na UnB fala sobre preconceito

Engajada em movimentos sociais e defensora das minorias, ela deseja que seu exemplo possa ser seguido por outras pessoas que sofrem o mesmo drama

postado em 08/11/2009 08:51

O encontro foi marcado na Universidade de Brasília (UnB) ao meio-dia e meia da quinta-feira chuvosa. Lá estava ela, pontualmente. O ambiente lhe é muito familiar. Afinal, as mais recentes conquistas ; aquelas que conduziram e ainda conduzirão seu destino profissional ; ali aconteceram. De longe, avista-se aquela mulher negra, de 1,77m e 75 kg. O peso só foi revelado depois. Talvez, depois da idade, seja o maior e mais temido segredo de qualquer mulher. Os cabelos, em aplique, são médios e cuidadosamente cacheados. Veste terninho bege, com blusa de seda preta. Os sapatos, de salto alto, combinam com a blusa. A bolsa também é preta.

Nos dedos da mão direita, dois grandes anéis. E uma aliança muito especial no anelar da esquerda. É a prova do compromisso de casamento. A moça ainda vive a lua de mel. O noivo ; um homem solteiro, jornalista, pai de três filhos ; mora no Rio de Janeiro, mas se prepara para mudar-se para Brasília. A fala é delicada, sutilmente delicada. Não há falsete. Ela anda sem rebolar, sem estardalhaços, sem provocações. Não faz questão de chocar. A moça, de 31 anos, além de elegante, é discreta. Tem o sorriso bonito, às vezes tímido, como se ainda tivesse medo de sorrir. Dentes perfeitos. Olhos amendoados realçados com lápis preto e sombra. Nas unhas, esmalte vermelho. Nos lábios, batom do mesmo tom. Engajada em movimentos sociais e defensora das minorias, ela deseja que seu exemplo possa ser seguido por outras pessoas que sofrem o mesmo drama

O nome dela? Jaqueline Jesus. Brasiliense, nascida no Hospital São Lucas, na Asa Sul. É filha de um sergipano operador de computador e de uma professora mineira de ciências. Família pequena, só tem um irmão, mais novo que ela. Jaqueline viveu a maior parte de sua vida em Ceilândia, no Setor O. Estudou em escolas com formação religiosa. Sempre foi uma das melhores alunas da sala. Gostava de artes , especialmente desenho. É funcionária da UnB, cedida ao Ministério do Planejamento. Formou-se em psicologia na universidade. Antes, porém, havia passado para química, mas desistiu no primeiro ano.

Fez mestrado ; foi aprovada em primeiro lugar. Ano que vem, defenderá sua tese de doutorado no Instituto de Psicologia da UnB. Em tempo: também foi aprovada em primeiro lugar na seleção para o doutorado. Em tudo que se propôs fazer, Jaqueline se destacou como exemplo.

E daí? O que esta história tem de tão espetacular, além de revelar uma enorme capacidade de luta e conquista dessa moça? Quantos outros também não conseguiram tanto? A história de Jaqueline começa a fazer toda a diferença quando se descobre que ela nem sempre foi Jaqueline. Como? Jaqueline é uma impostora? Usou documentos de outra pessoa? Fraudou exames? Mentiu para todos o tempo todo? Nada disso. Na verdade, Jaqueline nasceu Jaques Jesus. Há um mês virou, efetiva, assumida e psicologicamente Jaqueline ; uma mulher transexual (leia Para saber mais).

Preconceito

Esta história começa pelo fim. Mas, para entendê-la, é preciso voltar ao começo. O menino Jaques sempre foi delicadamente diferente. ;Aos 6 anos, minha tia percebeu que eu não era como os outros meninos. Gostava de bonecas. Cheguei até a fazer casinhas de papelão pra elas, mesmo que não as tivesse por perto. Fingia que elas existiam e brincava assim mesmo. Não me identificava com nada de menino;, conta Jaqueline.

Aos 12 anos, além da tia, do pai, da mãe, dos parentes mais próximos e até de alguns vizinhos, todos sabiam que o filho do operador de computador e da professora era ;diferente;. ;Delicado demais;, cochichavam alguns, à meia-boca. A palavra homossexual jamais fora pronunciada. ;Com 12 anos, tive a minha primeira relação com um garoto. Foi quando descobri que realmente me sentia atraída por homens.;

Jaqueline se tornou adolescente. Na escola ; e fora dela ;, sofreu toda sorte de preconceitos. ;Os meninos me perseguiam, me agrediam verbalmente;, diz. Ainda assim, engolindo o choro, ela não tinha dúvida da sua orientação. ;Aos poucos, fui construindo a minha identidade sexual e me vendo como um rapaz gay. O preconceito era duplo: além de negro, eu era gay.; O adolescente gay se tornou um homem gay. Passou a discutir questões da sexualidade, diversidade e os direitos das minorias. Engajou-se, para se sentir vivo.

Em 1997, aos 19 anos, começou a cursar psicologia. Na mesma época, Jaqueline entrou para a militância do Movimento de Gays, Lésbicas e Transgêneros (GLBT) de Brasília. Presidiu o Grupo Estruturação. Lutou por aquilo em que acreditava. Foi recebida por autoridades. Algumas conquistas se somaram. Em casa, porém, a homossexualidade de Jaques não era comentada. Assunto nunca dito. Palavra jamais pronunciada. O silêncio se fez respeito. Em 2000, aos 22 anos, mudou-se para o Plano Piloto. Foi morar com o primeiro companheiro. A relação durou 12 anos. ;Ele terminou comigo assim que dei início ao meu processo de transformação. Disse que não saberia viver com uma mulher. Eu entendi. Sofri muito. Ficou a amizade.;

Carta
Jaqueline mergulhou na análise. ;Me perguntava o tempo todo: ;Será que sou mesmo transexual?;. Passei por momentos de muita angústia.; Com a ajuda da terapeuta, descobriu aos poucos que não desejava se sentir um homem homossexual, mas uma mulher. ;Era a minha própria identidade de gênero;, explica. Ela começou a frequentar o grupo de transexuais do Hospital Universitário de Brasília (HUB). Ouviu depoimentos de outros transexuais ; homens e mulheres.

Jaqueline leu tudo a respeito do assunto. Procurou médicos e uma fonoaudióloga. Em maio deste ano, começou a usar hormônios, receitados por uma endocrinologista. E sentiu, aos poucos, as transformações físicas no seu corpo. Cresceram os seios. As feições ficaram mais delicadas, mais femininas. Os pelos, que eram poucos, hoje são eliminados com depilação a laser.

E é chegada a hora de mudar o guarda-roupa. Ternos, gravatas e sapatos deram lugar a terninhos, vestidos e saltos. ;Doei todas as roupas masculinas.; Tudo pronto para a nova mulher que ela já sabia existir. E como enfrentar os colegas de trabalho, no ministério? Como sair Jaques, na sexta, e voltar Jaqueline, na segunda?

Com a formação em psicologia e o apoio recebido durante os anos de terapia, Jaqueline fez uma carta aos colegas do ministério. ;Eu explicava todo o processo da minha transexualidade. E dizia que um dia chegaria vestida como de fato me sentia. Tive uma reunião com a chefia. O psicólogo do HUB foi ao meu trabalho;, detalha. Há um mês, Jaqueline se vestiu pela primeira vez como mulher. ;Logo que cheguei, os porteiros comentaram que eu tava muito bonita. Me senti segura.;

Cirurgia
Alguns transexuais optam pela cirurgia radical de mudança de sexo ; procedimento reconhecido e autorizado pelo Sistema Único de Saúde. Não aceitam de forma alguma a genitália masculina. Em casos extremos, quando não recebem apoio psicológico e não conseguem operar, chegam à automutilação e ao suicídio. Jaqueline faz acompanhamento no HUB justamente para decidir se quer ou não a cirurgia. ;Meu órgão genital não me causa repugnância. Operar é uma decisão que requer análise e maturidade. E nenhuma dúvida;, reflete a doutoranda da UnB.

A luta agora é para conseguir mudar, na Justiça, o nome e, se possível, o gênero ; feminino ; nos novos documentos. ;Juntarei os laudos médicos e darei para o meu advogado. O que fiz foi ajustar o meu corpo à minha identidade social;, explica. Com os olhos marejados, reconhece, ajeitando a aliança: ;Consegui sair de dentro de mim mesma. Isso é renascimento;.

No Instituto de Psicologia da UnB, a torcida pela aluna do doutorado é unânime. ;Há muito tempo não via a Jaqueline. Na verdade, a última vez que a vi, ela era Jaques. Esse é um momento histórico para toda a academia. Alguém que assume essa transformação, não apenas no ambiente privado, tem uma atitude política, no sentido de dizer que é possível sermos diversos, com nossas opções, escolhas, orientações, seja qual o nome se queira dar. O ser humano tem que estar bem na pele dele ; seja com saia ou calça. E precisa ser reconhecido e aceito assim na sociedade;, defende a professora de Jaqueline, Ângela Almeida.

Ainda comovida com a nova aluna e tentando usar o pronome corretamente (;isso virá com o tempo;, explica), Ângela continua ;Ele (ela) sempre foi brilhante e impertinente. Lutou pelo respeito e pela não homofobia;. Danielle Coenga, colega do mestrado, emenda: ;Ela tá colocando em prática o discurso politicamente correto. É como se dissesse: ;Eu sou isso aqui...;;. Para Sandra Studart, psicóloga e coordenadora do grupo de transexuais do HUB, a vitória de Jaqueline ajuda a sociedade a compreender melhor o universo dos transexuais: ;Isso quebra o estigma da marginalidade, da prostituição e do subemprego que normalmente cerca essas pessoas;. Jaqueline é a primeira mulher transexual brasiliene a chegar ao doutorado na UnB.

Se no ambiente de trabalho e na academia a aceitação foi normal, em casa não houve tanto espanto. É bem verdade que o pai preferia ter um filho homossexual a uma mulher transexual. ;Ele acha que o preconceito seria menor.; A mãe morreu há dois anos. ;Ela entenderia bem. Sempre me aceitou;, diz. O irmão apresentou-a à namorada como irmã. No casamento de uma prima, Jaqueline se mostrou pela primeira vez vestida de mulher. Levou o novo companheiro. A avó, de 89 anos, olhou-a com compaixão e lhe disse, na frente de todos: ;Minha filha, se você tá feliz, é isso que importa;. Todos entenderam. Novamente o silêncio se fez respeito.

E o que Jaqueline quer mais? ;Terminar meu doutorado, viver com o meu companheiro e lutar por todas as causas sociais e contra quaisquer formas de discriminação. É isso que sonhei a vida toda. Minha luta não será em vão.; Antes de qualquer coisa, esta é uma história feita de demasiada coragem.


Para saber mais
Quando o gênero é incompatível

Transexualismo é a condição clínica em que se encontra um indivíduo biologicamente normal e, que segundo sua história pessoal e clínica e exames psiquiátricos, apresenta o sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo somático. Portanto, um indivíduo que se encontra nesta condição tem uma autoimagem invertida e, por isso, se sente diferente (espécie/gênero) daquilo que fisicamente o representa (sexo/órgão). Isolado por esta disparidade, necessita se afirmar socialmente, inclusive em seu papel sexual, como pertencente ao sexo oposto.

Uma mulher transexual é uma pessoa que foi designada física e culturalmente como homem, no nascimento, mas que percebe a si, e espera que as pessoas a identifiquem como uma mulher. Algumas mulheres trans podem optar ou não por realizar uma cirurgia de redesignação sexual. Outras ainda podem não desejar fazê-lo. Isso porque partem do princípio de que mulher é acima de tudo uma condição social e não física.

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