Cidades

Justiça erra e homem paga por crime que não cometeu

Aldenor Ferreira da Silva foi condenado em 1995 por homicídio ocorrido em 1980. Mas a vítima - bem viva - acabou presa anos depois do suposto crime. Somente ontem, desembargadores do DF reconheceram oficialmente a grave falha

Renato Alves
postado em 10/11/2009 08:00
O advogado Aldenor Ferreira da Silva foi condenado a 24 anos de cadeia pelo sequestro, extorsão e assassinato de um homem em 22 de julho de 1980, na área rural de Sobradinho. Mas, na tarde de ontem, desembargadores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) reconheceram o erro histórico. Nunca houve tal homicídio. O homem dado como morto acabou preso em São Paulo, em 1995. Portanto, estava vivo, 15 anos após ser declarado vítima de homicídio pela Polícia Civil do DF, responsável pelo inquérito que resultou no indiciamento, na condenação e na prisão do acusado.

A novela que tem Aldenor da Silva, 65 anos, como protagonista começou em julho de 1980, quando ainda era detetive particular. Ele conta que o dono do escritório onde trabalhava o convocou para ir a Anápolis (GO) com um desconhecido. O trio seguiu no carro de Aldenor até a casa de José Augusto da Cruz Lima, acusado de roubar uma Variant II. ;Ele concordou em ir a Brasília, mostrar o comprador do veículo;, conta Aldenor. O quarteto chegou à casa de um fazendeiro, na Fercal, em Sobradinho, onde estava o carro.

Segundo o ex-detetive, o fazendeiro concordou em devolver o veículo ao dono, desde que recebesse o dinheiro de volta. José Augusto comprometeu-se a arrumar a quantia. Da Fercal, ele foi levado à Delegacia de Roubos e Furtos de Veículos, no Departamento de Polícia Especializada (DPE), onde registrou-se ocorrência do roubo da Variant II. Ninguém prendeu José Augusto porque não havia flagrante. Ele responderia ao processo em liberdade.

Um mês depois, Aldenor foi chamado à Delegacia de Homicídios, no DPE. ;Um delegado falou da morte de José Augusto. Me disse que eu estava ali como testemunha;, lembra o antigo detetive. O delegado lhe contou que um corpo já em decomposição havia sido encontrado na área rural de Sobradinho. A suposta viúva reconheceu que as roupas do cadáver eram ;parecidas; com as que José Augusto vestia momentos antes de ser dado como desaparecido.

Mandado de prisão
Passados 15 anos do suposto crime, um juiz de Sobradinho condenou Aldenor e o antigo patrão pelo sequestro, extorsão e assassinato de Augusto Lima. Ambos recorreram da decisão em liberdade. Em 18 de agosto de 2004, já exercendo a advocacia, Aldenor foi ao DPE acompanhar o depoimento de um cliente. Um policial identificou no computador um mandado de prisão contra o advogado. ;Para mim, o processo estava em fase de recurso, no Supremo Tribunal Federal;, alega. Ele acabou preso.

O acusado ficou detido por um ano e sete meses, até ganhar a liberdade condicional por ordem da Câmara Criminal (1) do TJDFT. Desembargadores se convenceram de possíveis falhas no processo que condenou o ex-detetive particular. Para cinco dos sete desembargadores presentes à sessão da Câmara Criminal, na tarde de ontem, não há dúvida sobre a injustiça contra Aldenor. ;Houve um erro judicial lastimável;, afirmou o desembargador Sérgio Rocha, relator do caso.

Além da comprovação de que a suposta vítima estava viva quando a Justiça condenou Aldenor, Sérgio Rocha ressaltou outras falhas: ;No processo, não há atestado de óbito nem laudo de exame cadavérico;. Após cinco votos favoráveis ao acusado, um dos desembargadores pediu prazo para analisar o relatório de Rocha. Ele e o outro colega não duvidavam da ausência de homicídio, mas queriam examinar a acusação de extorsão. A Câmara volta a se reunir no dia 23, quando sai a decisão final.

1 - Instância superior
A Câmara Criminal do TJDFT é o que se chama de última instância da segunda instância. Um crime é julgado por um juiz de primeira instância. Insatisfeito com o resultado, o réu ou a acusação pode recorrer a um segundo julgamento. O caso vai para uma turma de quatro desembargadores, uma turma criminal, a segunda instância. Se eles não tiverem decisão unânime, uma das partes ainda pode recorrer à Câmara Criminal, formada por oito desembargadores.

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; Luta para provar a inocência

O advogado condenado injustamente conta o sofrimento por que ele e a família passaram. ;Meu nome continua sujo;, reclama
Aldenor Ferreira da Silva foi condenado em 1995 por homicídio ocorrido em 1980. Mas a vítima - bem viva - acabou presa anos depois do suposto crime. Somente ontem, desembargadores do DF reconheceram oficialmente a grave falha
Por 24 anos, Aldenor Ferreira da Silva escondeu da família a batalha que travava para provar sua inocência na acusação de sequestrador e assassino. Poupava os seis filhos por acreditar piamente na absolvição dos crimes, supostamente ocorridos em 1980. O segredo veio à tona em 18 de agosto de 2004, quando, do balcão de entrada do Departamento de Polícia Especializada (DPE), um policial avisou: ;Doutor, há um mandado de prisão contra o senhor;. A partir de então, o advogado viu a vida ruir.

Ainda no balcão, Aldenor foi algemado, levado para exame de corpo delito no Instituto de Medicina Legal e, em seguida, colocado em uma cela no DPE com mais de 40 presos comuns. Dois dias depois, o advogado estava trancafiado no cubículo traseiro de um carro da Polícia Civil, a caminho do Complexo Penitenciário da Papuda. ;Me senti um Fernandinho Beira-Mar (o megatraficante carioca). Nunca vi tantos policiais, carros, armas pesadas e sirenes ligadas;, recorda.

Mas a pior cena que não sai da cabeça de Aldenor é a chegada ao presídio. ;Ali vi o que teria de enfrentar. Logo de cara, um agente gritou, sarcasticamente: ;Tá chegando mais ladrão, bem-vindo;;, conta. Assim como o acusado, os parentes dele enfrentaram os constrangimentos no presídio. ;Era duro para todos passar pelas revistas íntimas, as humilhações e ver o meu pai preso, mas sempre acreditamos na inocência dele;, lembra Bruno Almeida da Silva, 24 anos, o filho mais novo.

Bruno também não esquece como a rotina de todos da família mudou com Aldenor preso. ;Para pagar os advogados, meu pai teve que vender o carro e a nossa casa, onde todos foram criados, cresceram. Nos fundos do lote, também morava a minha avó;, lembra. Os Ferreira da Silva moravam no Gama e continuam a viver na cidade. A história do pai quase fez o caçula largar o curso de direito, que havia começado antes da prisão de Aldenor. ;Quando ele me explicou tudo, bateu uma revolta muito grande, uma descrença na Justiça;, comenta o recém-formado advogado.

Indenização
Apesar dos votos favoráveis de cinco dos sete desembargadores presentes à sessão da Câmara criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, ontem, Aldenor não dá a luta como vencida. ;Meu nome continua sujo. Nos arquivos de vários órgãos, ainda sou um assassino e sequestrador. Não cometi nenhum crime, nem o de extorsão.; O advogado dele, Jason Barbosa de Faria, já estuda um pedido de indenização. ;Aí é outra guerra longa, pois a ação será contra o Estado;, adianta.

Faria não fala em valores. Nem Aldenor. ;Não há dinheiro que pague o que eu passei, o que a minha família passou. Só suportei tudo isso por conta dos meus filhos e a minha mulher, que se mantiveram firmes ao meu lado;, desabafa. Agora, Aldenor diz querer trabalhar, reconquistar os clientes perdidos nos quase dois anos preso. ;Preciso pagar dívidas, ajudar a minha mulher, uma professora aposentada que assumiu as finanças da casa quando estive preso.;

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