Pedro fumou maconha pela primeira vez aos 14 anos. Aos 17, matou. Acabou internado no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) aos 19. Saiu um ano e meio depois. Já era pai e decidiu trabalhar para sustentar a filha. Planejava mudar de vida, mas não teve tempo. Foi executado dentro de casa com 10 tiros. A história de Pedro é uma entre centenas de outras.
O número de crianças e de adolescentes dispostos a matar e a morrer cresce numa escala alarmante no Distrito Federal. Em 2009, os processos de homicídio e de tentativa de homicídio praticados por quem tem menos de 18 anos mais que dobraram em relação a 2008 (veja arte). As razões para tirar a vida do outro são, na maioria das vezes, banais. Um bate-boca na rua, uma dívida com drogas, a rixa entre gangues ou ciúme da pessoa amada são ingredientes de uma guerra juvenil que parece cada dia mais longe do fim.
Somente em 2009, estão em tramitação na Vara da Infância e Juventude (VIJ) 187 processos de homicídio e 179 de tentativas de homicídios em que o adolescente foi o autor, respectivamente, um aumento de 133,7% e 113% em relação ao ano passado. A maioria dos atos infracionais ocorreu este ano e ao longo de 2008. O levantamento, ao qual o Correio teve acesso com exclusividade, foi pedido pelo promotor Renato Varalda, após ele receber, em apenas dois dias, 63 processos de homicídio e de tentativa de assassinato.
Para Varalda, o aumento dos processos desse tipo de crime expõe o descaso a que as crianças e os adolescentes são submetidos no Distrito Federal. Na opinião dele, revela uma sequência de falhas que começa na família, passa pela sociedade, escola e pelos poderes Judiciário e Executivo local. ;A família não passa valores, a sociedade não se sensibiliza com a causa da infância e juventude, a escola não tem atrativo para manter esse jovem em sala de aula, o juiz aplica a medida socioeducativa e não chama esse jovem para cumprir e o Estado que não tem políticas de prevenção à marginalidade;, enumerou.
Submundo
Se as estatísticas assustam, as histórias das mães que viram seus filhos se perderem no submundo das drogas e do crime impressionam ainda mais. A diarista Joana (nome fictício), de 46 anos, é a mãe de Pedro, o rapaz citado no começo dessa reportagem. ;Ele chegou à 1h30 do trabalho (como garçom). Tomou banho e colocou um crepe para esquentar. Ia comer com a mãe da filha dele. De repente, três homens encapuzados invadiram minha casa, e atiraram. Minha neta tinha 1 ano e meio na época e acordou com os tiros;, relembrou. Joana sabe quem matou seu filho, mas não denuncia por medo. ;Tenho outra filha, marido, genro. Preciso preservar os que ainda estão vivos. Porque o outro (Pedro) já se foi;, justifica. Joana não tem explicação para muitos dos atos do filho.
Na avaliação do promotor Renato Varalda, histórias como essa só deixarão de ser frequentes quando o Estado assumir de fato que os menores de 18 anos são prioridades, como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). ;Esses jovens sentam-se na minha frente e não têm perspectiva de vida nenhuma. Eu pergunto: ;O que você pensa em ser no futuro?;. Eles dão de ombros ou respondem: ;Não sei;;, afirmou.
De acordo com Varalda, isso ocorre porque essa parcela da população está totalmente excluída do mercado de trabalho e do consumo, fora da agenda cultural e evadiu-se da escola. ;Eles não leem. Não sabem nada sobre a diversidade de profissões. Não enxergam alternativas. É nesse vazio de tudo que o Estado precisa atuar;, defende.
Pedido de atenção ao Caje
Direção alerta o MP sobre a superlotação da unidade e pede providências. Um promotor vai fiscalizar hoje as condições de funcionamento
A violência extrema praticada pelo jovem em conflito com a lei deságua em uma das quatro unidades de internação no Distrito Federal. A principal delas, o Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) está superlotado. A instituição tem 161 camas e pode abrigar até 240 internos dormindo apenas no colchão. Mas ontem havia 319 jovens. Por conta disso, os adolescentes punidos com a medida de internação provisória estão misturados aos já sentenciados, o que é proibido por lei.
As denúncias estão em um ofício entregue pela direção do Caje à Promotoria de Defesa da Infância e da Juventude do DF na última sexta-feira. A situação está ainda mais crítica desde a última terça-feira, quando os servidores decidiram pela paralisação. Com isso, todas as atividades no Caje estão suspensas desde ontem. E, enquanto a greve não acabar, os jovens ficarão trancados nos módulos com direito apenas ao banho de sol. Não poderão frequentar aulas, oficinas nem atividades esportivas porque não há servidor para fazer a segurança.
Uma fonte ouvida pelo Correio revelou que a situação está difícil. ;Um dia ou dois, a gente aguenta. Mais que isso vai ficar muito complicado. Pode acontecer qualquer coisa;, advertiu. Diante disso, o promotor Renato Barão Varalda comunicou o fato ao juiz da Vara da Infância e Juventude. E designou um promotor para fiscalizar as condições de funcionamento da instituição ainda hoje.
No ofício encaminhado à Vara da Infância, os dirigentes da entidade comunicaram a impossibilidade de receber mais adolescentes, a não ser que os novatos durmam no banheiro, único lugar disponível. E que está praticamente impossível separar os internos respeitando as diferenças e as rivalidades.
A internação é a medida extrema. Antes dela existem outras, mais brandas, e que também não são cumpridas conforme preconiza o estatuto. Relatórios de fiscalização das medidas de liberdade assistida revelam que faltam servidores, carro, gasolina e até papel. Com tanta precariedade, os profissionais não conseguem acompanhar os jovens punidos. ;Isso aumenta a sensação de impunidade;, destaca Varalda.
Invisíveis
Olga Jacobina é psicóloga e está fazendo doutorado na Universidade de Brasília (UnB) na área de proteção e medida socioeducativa. Segundo ela, boa parte dos adolescentes punidos com a liberdade assistida recebeu antes medida de proteção ; quando há violação de direito. ;Esses jovens só tem visibilidade quando cometem um ato infracional grave. Aí a Justiça enxerga, a sociedade enxerga, todo mundo enxerga;, destacou.
O subsecretário de Justiça, João Marcelo Feitoza, reconhece as dificuldades, mas argumenta que o governo tem se esforçado para sanar as falhas. Segundo ele, a superlotação do Caje só será resolvida quando as cinco unidades de internação estiverem prontas. Duas delas serão inauguradas até o fim do ano e, depois disso, o Caje será demolido. ;Estamos reestruturando as 14 unidades de liberdade assistida e vamos construir outras duas. Em dezembro, lançaremos o edital de concurso para preencher 311 vagas para psicólogos, pedagogos, assistente sociais, atendente de reintegração social e agentes-administrativos;, enumerou Feitoza.
A ampliação do número de conselhos tutelares de 10 para 23 e a construção das Casas de Cidadania (espaços com uma rede completa de atendimento ao cidadão) estão na lista das ações para reforçar a rede de atendimento ao jovem. Além disso, o governo cita programas como os que são oferecidos nos 17 centros de Orientação Socioeducativa (Cose), com cursos de teatro, capoeira e futebol no horário inverso ao da aula, e a Carreta Expressação e a implantação das casas lares ; pequenos abrigos integrados à comunidade ; como iniciativas de proteção ao adolescente.
DUPLA ACUSADA DE EXPLORAÇÃO
Após cinco meses de investigação, a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) indiciou Davi Aparecido Pereira e Aldete Lopes de Barros por exploração sexual de menores e rufianismo (ato de lucrar com prostituição). Como não houve prisão em flagrante, a dupla responderá em liberdade. Se condenados com pena máxima, podem pegar até 17 anos de prisão. A polícia chegou até eles durante a investigação do desaparecimento de uma adolescente de 15 anos. De acordo com a delegada-chefe da DPCA, Gláucia Ésper, a própria menor, localizada em junho, delatou os acusados, para quem teria trabalhado. A DPCA investiga também a boate Parthenon, localizada no Setor de Indústrias Gráficas, onde uma das menores exploradas por Davi frequentava e realizava danças eróticas e programas com clientes.
Cópia de memorando da Gerência de Segurança: superlotação de quatro módulos levou a entidade a misturar os provisórios com os já punidos
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Ponto crítico
A maioridade penal deve ser reduzida?
SIM
Maria José Miranda Pereira
Defendo a redução da maioridade penal de forma escalonada, com punição mais severa para o infrator de 17 anos do que para um de 15. Os menores de idade, hoje, com a globalização, com o amplo acesso aos meios de comunicação, têm plena consciência da ilicitude de seus atos, podendo agir conforme esse entendimento. Fossem mesmo incapazes, como a lei os considera, aos menores com 16 anos não seria permitido votar e escolher os dirigentes do país.
A legislação atual é incentivadora do crime. Um menor com mais de 17 anos que, juntamente com um maior com 18 anos, mate alguém para roubar, recebe reprimenda máxima de três anos de internação, enquanto o maior é punido com mais de 20 anos de prisão. A desproporção é visivelmente injusta e estimula criminosos maiores de idade a praticarem crimes em parceria com menores, induzindo -os a assumir a autoria dos crimes perante a Justiça.
O principal argumento dos contrários à redução da maioridade é que isso só serviria para encher as cadeias, o que não resolveria o problema da criminalidade, mas, ao contrário, aumentaria. O argumento tem mera aparência de verdade. Ninguém tem a pretensão de acabar com o crime só com punição mais severa para os menores. Há duas medidas igualmente indispensáveis para reduzir a criminalidade: políticas públicas de educação e amparo a crianças e adolescentes e, paralelamente, punição mais severa e efetiva para os infratores. Uma só delas jamais seria suficiente para conter a violência.
Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal
NÃO
Lia Junqueira
Considerando meus 72 anos, sendo 46 dedicados à infância e à adolescência, em nenhum momento aceitei a ideia de reduzir de 18 anos para 16 anos ou outra idade qualquer como meio de resolver o problema da criminalidade. Nesta caminhada encontrei pessoas que consideravam a pena de morte como solução, outras que acreditavam no controle da natalidade e até a defesa do aborto para impedir o nascimento de crianças que certamente apresentariam problemas para a sociedade na adolescência.
O Brasil tem uma história da legislação do menor de idade que, sem exceção, aborda a responsabilidade penal sem nenhuma preocupação com o nascimento, a infância e a adolescência desses seres humanos que sequer têm o direito a educação e saúde garantidos neste Brasil, sendo que a saúde e a educação seriam o único meio de evitar a criminalidade e a violência que sempre vivenciamos.
A infância e a adolescência hoje são ;protegidos e orientados; pelos conselheiros tutelares (maiores de idade, sem antecedentes criminais e residentes no município, nada além disso, nem afalbetizados precisam ser). Na minha opinião, que defendo como inaceitável a redução da maioridade penal, as pessoas que pensam o contrário deveriam procurar entender todas as legislações existentes, que não apresentam medidas protetivas e caminhos que mudem a situação desses brasileiros. Tudo o que é feito no Brasil para o pobre, não presta para ninguém. Tudo o que é feito para o rico, é bom para todo mundo.
Coordenadora do Centro de Referência da Criança e do Adolescente da OAB-SP