Jornal Correio Braziliense

Cidades

Em busca do passado

Da safra das cinco moças inscritas no primeiro concurso de Miss Brasília %u2014 em 1960 %u2014, mulher que hoje vive nos Estados Unidos retorna à capital para matar saudades e esbarra num imprevisto: perde, dentro de um ônibus, todas as fotos daquela época

Dentro de um circular que liga a W3 Sul à W3 Norte, ela perdeu toda a história do seu passado. Estavam lá as fotos de um tempo único. O registro de uma época. A noite em que ela viveu um conto de fadas. Brasília tinha apenas 46 dias de existência. E naquela noite, no salão nobre do Brasília Palace Hotel, todos os olhos e flashes eram para aquelas cinco moças. Dali sairia a primeira Miss Brasília, depois da inauguração da capital. Era 5 de junho de 1960. Na tarde de terça-feira, às 13h30, 49 anos e sete meses depois, ela embarcou num ônibus que a deixaria no Pátio Brasil Shopping. Tinha um encontro com o dermatologista.

E por que levava aquela sacola cheia do passado? ;Pro médico ver como eu era e como tinha ficado, depois que comecei a fazer pequenos e malsucedidos retoques no nariz;, ela responde. Quem responde? Nancy Terezinha de Rezende, uma das candidatas ao título de mulher mais bonita da capital de JK naquele inesquecível 1960. Ao desembarcar no ônibus, depois de dar alguns passos, ela percebeu que havia esquecido a sacola preta (da Forum) dentro do coletivo. Correu para ver se conseguia detê-lo. Ele partira. Nancy ficou desolada. Não havia mais como mostrar ao dermatologista como ela era no passado. Depois da consulta, foi à Rodoviária. Perguntou em todos os guichês. Nada. Chorou, sozinha, no meio da multidão.

E ela faz um apelo a quem, porventura, tenha encontrado a sacola preta de alça ; com fotos antigas e algumas recentes, com sua família nos Estados Unidos, onde mora atualmente: ;Darei um grande abraço e uma recompensa em dinheiro a quem achou e puder me devolver. Ficarei eternamente grata. Ali estão todo o meu passado e a minha história de vida.; E o tempo urge. Semana que vem, Nancy retorna à Califórnia. Ela insiste: ;Passei mal, tive insônia, tomei até remédio pra dormir. Preciso levar isso de volta...;

Mas, afinal, quem é Nancy, minha gente? Vamos lá. Na tarde insuportavelmente quente de ontem, na 703 Sul, o Correio conheceu uma das cinco personagens daquela noite de 5 de junho. A saber: Ruth, Helenice, Eloísa, Magda e Nancy. Ela nos esperava ansiosa. E, aos poucos, mostrou-se uma mulher extremamente simpática, lutadora e com muito, muito mesmo, medo de envelhecer. ;Isso me assusta. É complicado admitir que o tempo passa, que vamos perdendo a juventude... Mas ao mesmo tempo sei que não há nada a fazer...;

No texto publicado dias antes da noite de gala neste Correio ; que cobriu com destaque, ao lado da TV Brasília, o concurso da primeira e oficial Miss Brasília ;, a descrição da bela: ;O Grêmio Esporte Clube, famoso desportivo da nova capital, indicou para representá-lo a meiga Nancy, uma canção de garota, natural de Ipameri, no estado de Goiás. Seus cabelos são castanhos, seus olhos também o são. Tem 54 quilos e um metro e sessenta. Ela, que chegou com os pais pouco depois de iniciada a construção da cidade, é hoje funcionária da Prefeitura Municipal de Brasília, servindo na subprefeitura do Núcleo Bandeirante;.

Nancy chegou a Brasília em abril de 1957. ;Tinha 16 anos;, conta. Veio com a mãe, costureira de coragem. O pai, comerciante, ficou em Anápolis com os outros dois filhos. ;Eu não tinha muita ideia do que viria a ser Brasília, mas tinha certeza de que aqui seria independente;, lembra. Mal chegou e logo arrumou emprego, no restaurante de um primo. Virou garçonete. Depois, ainda menor de idade, balconista de loja. Aos 17 anos, foi trabalhar como caixa do primeiro posto de gasolina de Brasília, ;na entrada do Núcleo Bandeirante;, lembra.

Broto do dia
Ali no posto, fez muitas amizades. E não demorou a mudar de emprego. Ainda aos 17 anos, foi admitida como datilógrafa na Novacap. ;Minha primeira carteira assinada.; O tempo passou. Raiou 21 de abril de 1960. Brasília foi inaugurada. O Correio Braziliense nasce com a cidade. Um dia, Nancy foi clicada para uma coluna que se chamava Broto do Dia. ;Saí duas vezes;, lembra. Chegou o momento de escolher a mulher mais bonita da capital, afinal o Miss Brasil queria uma representante do DF. Chamaram-na. O pai não gostou. Disse que moça de respeito não andava de maiô por aí. A mãe, costureira, adorou. Incentivou a morena de cintura fina e pernas torneadas.

E lá se foi a goiana Nancy Terezinha à disputa. ;Não sei se era bonita ou se faltava mulher na cidade para o concurso;, ela diz. Um jornalista selecionou as cinco beldades. Nancy tinha 19 anos. Foram reportagens e mais reportagens com chamadas na capa do jornal. Tudo era matéria: as belas escolhendo, nas Lojas Riachuelo, os tecidos com os quais fariam os vestidos da noite que pararia Brasília. Visitas aos poucos prédios e monumentos construídos. Ensaios de maiô. Uau! (;Pareciam uns pijamas;, diverte-se, quase 50 anos depois, Nancy). Era o assunto da cidade de JK cheia de barro, sonhos e imensidão.

Tititi
Cinco de junho chegou. As meninas foram para o Brasília Palace Hotel logo pela manhã. Precisavam repassar o desfile. Conhecer a passarela. Maquiar-se. Fazer cabelo. Espaço lotado. Gente disputando mesa. Autoridades e personalidades. Doze ilustres jurados. Apostas na vencedora. Tititi, expectativa, apreensão. Nervosismo de mãe de miss. Para frustração do púbico masculino, não houve desfile de maiô. Maldade! As cinco moças desfilaram apenas com dois vestidos ; esporte e gala. ;Minhas roupas foram costuradas pela minha mãe;, conta. E veio o resultado. Nancy ficou em quinto lugar. ;Se eram cinco candidatas, fiquei em último;, acha graça hoje.

A candidata que levou o título de Miss Brasília 1960 foi Magda Pfrimer. Este Correio escreveu: ;Uma linda loura de 1,72 de altura, com 62 quilos bem distribuídos, nascida no Norte de Goiás...; A festa acabou. A vida seguiu. Brasília tomava forma a cada dia. Nancy nunca mais se encontrou com as outras candidatas. ;Gostaria muito de revê-las, saber por onde andam.; Casou-se. Dois anos depois, nasceu seu primeiro e único filho.

Em 1971, o casamento da Miss Grêmio Esporte Clube chegou ao fim. Ela pediu licença-prêmio da Novacap e embarcou para os Estados Unidos com o filho. Nunca mais conseguiu ficar muito tempo longe da América. Aposentou antes do tempo previsto em lei. E mudou-se definitivamente para a terra do Tio Sam. O filho cresceu por lá, formou-se em enfermagem. Casou-se. Virou cidadão americano. Hoje tem 47 anos.

Nancy também refez sua vida. Casou-se com um americano divorciado. Tem enteada e netos. Contou-lhes as histórias de uma cidade que viu nascer. O concurso marcante de que participou. Voltou a Brasília para rever parentes e amigos. Nesta última estada, quis levar ao seu dermatologista fotos de um tempo que só ela sabe como foi importante. Queria que ele a visse bela e jovem. Às vésperas dos 70 anos, ela assume que pinta o cabelo, já colocou botox no rosto e na boca, cuida da alimentação, não bebe, não fuma, não faz ginástica e gosta de se sentir bem diante do espelho. O passado de Nancy, perdido dentro de um ônibus, lhe representa a própria vida. O que dá sentido ao seu presente. E coube, espremido e em preto e branco, dentro de uma sacola com alça.


SOLIDARIEDADE
Você achou uma sacola cheia de fotos de miss, dentro de um ônibus, na tarde de terça-feira? Ela pede, como súplica, que a devolva. Contato: 9616-3988.