Quatro anos se passaram e o abismo entre negros e não negros no mercado de trabalho do Distrito Federal ainda persiste. Os avanços entre 2004 e 2008 foram tímidos, segundo levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) com base em dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED). Os números divulgados ontem mostram que os negros continuam a ganhar menos, ainda que o grau de escolaridade seja o mesmo. Além disso, permanecem sendo minoria nos cargos de gerência e planejamento. E a cada 10 desempregados no DF, quase dois terços ; 65,1% ; são negros. Em 2004, esse percentual era de 73,2% (veja quadro).
O Dieese cruzou os dados com a esperança de constatar que o acelerado crescimento econômico dos últimos anos pudesse ter amenizado a diferença entre negros e brancos. O resultado, porém, causou espanto. ;Observamos uma estabilidade incômoda. A discrepância se perpetuou. Os passos que estão sendo dados no DF são tímidos;, avaliou o economista do Dieese Tiago Oliveira. Amanhã, comemora-se em todo o país o Dia da Consciência Negra. (1);Pelos números, podemos deduzir que o debate não tem ajudado a mudar muito o cenário do mercado de trabalho no DF;, completou.
A população economicamente ativa negra diminuiu no período pesquisado, de 68,1% para 60,6%. Na avaliação do Dieese, isso quer dizer que os negros têm encontrado mais dificuldade para achar emprego e passam mais tempo à procura de trabalho. A diferença apontada pela pesquisa em comparação com os não negros é de quatro semanas. Não bastasse, os negros trabalham uma hora por semana a mais. E o abismo do rendimento entre os dois grupos aumentou: os negros passaram a ganhar, em 2008, 63,6% do que ganham os brancos. Em 2004, esse percentual era de 66,3%. Na maioria dos setores analisados, o não-negro passou a ganhar mais que o negro.
Rendimento
Para o economista Tiago Oliveira, tudo leva a crer que o mercado do DF discrimina o negro. ;A diferença de rendimento é a mais preocupante. O crescimento econômico e a melhoria dos indicadores do mercado de trabalho não fizeram diferença;, comentou, ao defender políticas públicas mais eficazes para qualificar o negro. O levantamento de 13 páginas do Dieese termina indicando que ;há um longo caminho a ser percorrido para superação das condições desfavoráveis dos negros;.
A baiana de Feira de Santana Dinair de Jesus, 44 anos, é negra. Assim se autodefine e não gosta de eufemismos. A mulher mora em Ceilândia e vive da venda de acarajé. Certa vez, contou ela, ao concorrer a uma vaga de emprego com uma pessoa branca, sentiu-se discriminada. ;Ela foi escolhida para trabalhar na secretaria da presidência e eu fui para a cantina servir cafezinho;, lembrou. A filha de 27 anos passa pela mesma dificuldade, segundo Dinair. ;Ela se formou, é técnica em radiologia, mas não consegue nada. Acho que vai acabar virando camelô;, ressalta.
;O povo tem dificuldade em valorizar o negro, mas todo mundo é igual. Não sei para que esse preconceito;, disse o vendedor de picolé Carlos Alexandre Lopes da Silva, 20 anos, morador de Planaltina de Goiás. Ele concluiu apenas o ensino fundamental.
Na avaliação de João Bilola, coordenador para Assuntos da Igualdade Racial da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, essa disparidade é resultado de uma ;cultura do enbranquecimento;. A partir do ano que vem, segundo ele, serão intensificados projetos para capacitar o negro. ;Quanto mais instruído ele for, mais chance terá de conquistar o mercado de trabalho e mudar esse quadro;, defendeu.
Bilola destacou ainda que a maioria dos negros empregados no DF trabalha em serviços gerais e domésticos. A pesquisa do Dieese também comprova essa tese apresentada pelo coordenador.
Reflexão
A data é celebrada desde a década de 1960, mas só foi criada por lei em 2003. Foi escolhida por coincidir com o dia da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, o ícone da resistência negra à escravidão. Diversos eventos são realizados para provocar uma reflexão sobre a questão racial no Brasil.
Palavra de especialista
Luta que é constante
[FOTO4];Esses dados reforçam a tese de que políticas de ações afirmativas são necessárias. Sem elas, não teríamos qualquer melhora. Só com elas podemos vencer esses limites. No ritmo que estamos, segundo pesquisas, a população negra poderá levar 30 anos para se equiparar à não negra. Estou falando de cotas, incentivos, bolsas de estudo, qualificação; Qualificar o trabalhador negro é dar a ele a oportunidade de mudar esse cenário. O racismo faz parte da nossa cultura e, como ainda não amadurecemos o debate, o comodismo perdura. É muito cômodo para um empregador, por exemplo, continuar não contratando negro porque ele não é pressionado para isso. Se empresas recebessem incentivo para ter negros em seu quadro de pessoal, a situação poderia ser diferente. Quando se mexe no bolso das pessoas, as coisas podem mudar. Por enquanto, persiste o estereótipo de que os negros não são qualificados. Mesmos no serviço público: a pessoa passou no concurso, mas não ocupa cargos de gerência porque a tal aparência não condiz com o perfil desejado. Além das ações afirmativas, o movimento negro não pode parar. Há muito o que fazer.;
Nelson Inocêncio é professor do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB),coordenador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (Neab) da universidade e autor do livro Consciência negra em cartaz