Sentimento de que a Justiça foi feita. Esse é o único alívio para famílias dilaceradas pela morte de filhos, pais ou irmãos em tragédias no trânsito. Mas a condenação dos responsáveis nem sempre ocorre. Em alguns casos, só resta aos sobreviventes seguir em frente do jeito que der. Para os envolvidos, direta ou indiretamente, nada será como antes. A vida muda e os pensamentos também.
A doméstica Laurenita Rosa de Lima, 51 anos, perdeu o filho caçula, o motoboy Valdeson Lima Duarte, 20. Em 11 de setembro de 2006, ele tentava ultrapassar um ônibus na 709 Sul quando bateu atrás de um carro da Polícia Militar. O rapaz morreu a caminho do hospital. "Era o primeiro emprego dele. Sei que muitos motoboys são imprudentes, mas era o que ele sabia fazer. Eu não vivo mais, eu vegeto", conta a mãe.
À época do acidente, Valdeson deixou a mulher grávida de noves meses e uma filha de 1 ano e 8 meses. Todos moravam na casa de Laurenita, na 709/908 Sul. O impacto da morte do motoboy foi avassalador na família. A nora Cristiane Alves dos Santos, então com 18 anos, teve um quadro grave de depressão. A filha mais velha do casal sofreu diversas crises nervosas até começar a tomar medicação controlada. A mãe da vítima cuidou delas e ainda manteve o orçamento familiar. "Também tive depressão. Sentia muita tristeza e ainda sinto. Todo mundo morava junto e hoje não tenho mais meus netos aqui. Moro com meu filho mais velho, mas minha nora voltou para a Bahia para ficar com a família. Não desejo isso a ninguém", acredita Laurenita.
Investimento
Para o aposentado Carlos Augusto Teixeira Filho, 61, nada pode compensar o investimento feito pela família no filho Francisco Augusto Nora Teixeira, 29. "Ele era um advogado em início de carreira com boas perspectivas. Tinha planos de estudar no exterior e estava noivo. O acidente acabou com tudo isso", afirma. O advogado morreu no primeiro acidente de trânsito com morte na Ponte JK, em 24 de janeiro de 2004. O estudante Rodolpho Félix Grande Ladeira, 27, dirigia um Mercedes Benz a 165km/h, segundo laudos periciais, quando bateu na traseira do Santana conduzido por Francisco, chamado de Gutão. Ele morreu na hora.
A tragédia teve repercussão nacional e foi a primeira vez que um acidente de trânsito foi tratado como crime de homicídio qualificado. O último pronunciamento oficial ocorreu em 14 de novembro de 2007, quando os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entenderam que a colisão não foi uma fatalidade, ou seja, o motorista assumiu os riscos de provocar um desastre ao trafegar em alta velocidade. "De lá para cá, os recursos de defesa fizeram parar o caso na Justiça. Continuo rezando e espero que um dia esse motorista seja julgado. Isso não vai trazer meu filho de volta, mas sentirei que cumpri minha obrigação. Não vou deixar o caso cair no esquecimento", garante Teixeira. Rodolpho nunca foi preso.
Boa ação voluntária
; A vice-presidente da ONG Rodas da Paz, Beth Davison, encontrou no trabalho voluntário e na defesa dos direitos dos ciclistas uma forma de aplacar a tristeza pela morte do filho Pedro Davison, 25. Ele foi atropelado quando pedalava pela faixa central do Eixão, em 2006. O motorista do carro que o atingiu, Leonardo Luiz da Costa, vai a júri popular em 11 de fevereiro do ano que vem. O crime foi considerado homicídio doloso qualificado (sem chance de defesa à vítima). "A dor da perda não cessa, só acomoda", diz Beth. Pedro deixou uma filha de 11 anos.
Entrevista // Hartmut Günther*
Há como calcular a dor da perda de uma pessoa?
O Ipea calculou em R$ 200 mil os custos de um acidente com morte. E em R$ 151 mil a morte de uma pessoa no trânsito. Mas isso são números frios. Os elementos subjetivos são incalculáveis. A perda de entes queridos para uma pessoa é diferente do que para outra. Depende de como elas lidam com a morte. Alguém pode encarar como algo normal. Outra pessoa pode demorar cinco anos para superar o fato. O esforço de colocar a perda em números é louvável, porque infelizmente tem gente que só entende números, mas não dá para calcular o impacto disso na pessoa.
O que pode ocorrer psicologicamente às pessoas que perdem alguém em acidentes de trânsito?
Isso vai depender do próprio histórico dela. Casos de depressão são comuns em pessoas que perderam familiares ou amigos. A doença é uma abreviação para não conseguir enfrentar a vida. Mas quem já tem tendência à depressão pode ter um quadro pior. Esse tipo de impacto (acidente de trânsito com morte), na pior da hipótese, vai inviabilizar a pessoa durante alguns anos. Estresse, nervosismo, agressividade são outros sintomas que podem aparecer. Cada comportamento depende dos seus antecedentes.
Algum dia essa perda pode ser superada?
Não dá para saber se um dia esse tipo de perda pode ser superada. Mas acredito que muito tempo depois a pessoa vai lidar de outra forma. A única coisa que sabemos é que os impactos são fortes e variados e que não existe nenhuma razão para a sociedade não fazer esforço para evitar isso. Cumprir a lei seca, por exemplo, é um começo. Dirigir mais devagar e ter outras atitudes que sabemos que diminuíra os acidentes.
Você acha que o governo assiste adequadamente as pessoas que perdem familiares e amigos no trânsito?
Acha que o estado já faria muita coisa se desburocratizasse o sistema. Uma pessoa tem que provar com documentos a morte do familiar e ainda esperar muito para receber o Dpvat (o seguro obrigatório). O seguro tem que ser pago imediatamente. Antes de oferecer atendimento psicológico às pessoas, o estado deve atender melhor o cidadão. Na Justiça, os crimes têm que ter uma solução mais rápida. É importante passar a mensagem para a sociedade de que o criminoso não escapará e não a mensagem de que aqueles que podem dizer "você sabe com que está falando" se safam. Todos somos iguais perante a lei.
* Professor de psicologia do trânsito da Universidade de Brasília (UnB)
DEPOIMENTO // Carla Silvana Monteiro de Almeida, 24 anos
"Minha irmã* chegou em Brasília em 10 de dezembro de 2007. Veio da nossa cidade natal, Maracanã (PA),para cuidar do meu do meu filho mais velho, que na época tinha um ano e um mês de idade. Ela estava sempre de bem com a vida, vivia sorrindo. Gostou da mudança. Quando aconteceu o acidente, Joseane trabalhava numa loja no Taguacenter. Foi o primeiro emprego dela. Estava muito orgulhosa de ter o próprio dinheiro. Mas a felicidade acabou naquela madrugada de sábado. Joseane foi para uma festa em Taguatinga Norte com mais outros amigos.
Não consegui me despedir dela porque fui fazer meu filho dormir. Lembro quando ela fechou a porta do quarto que dormíamos juntas. Essa foi a última vez que a vi. No dia seguinte, logo pela manhã, a vizinha contou o que tinha acontecido. Fui reconhecer o corpo no hospital porque minha irmã não tinha RG e foi tratada como indigente. O acidente pegou a gente de surpresa, foi complicado lidar com as coisas e nossa vizinha foi um anjo que caiu do céu.
Não tínhamos condições para pagar o enterro e ela ajudou em tudo. Só minha mãe e meu padrasto puderam vir do Maranhão. Depois da morte de Joseane, minha vida mudou. Me separei do meu filho mais velho (hoje ela tem um bebê de três meses) porque tive que começar a trabalhar e não tinha com quem deixá-lo. Ele mora com o pai no Maranhão e faz dois anos que não o vejo. Emagreci e ainda choro direto. Fico pensando se ela estivesse aqui, tudo seria diferente"
*A irmã caçula de Carla, Joseane Monteiro da Silva, 17 anos, foi uma das quatro pessoas que morreram num acidente de trânsito ocorrido em 27 de abril de 2008, na DF-001, a 2 km do viaduto da Via Estrutural, no sentido Taguatinga/Brazlândia. A garota estava num Vectra com mais quatro amigos quando o Peugeot conduzido por Igor de Rezende Borges, 26 anos, bateu de frente com o veículo.
Testemunhas viram Igor dirigindo o carro em ziguezague e na contramão. Exames preliminares indicaram que o condutor do Peugeot estava sob efeito de álcool e dirigia a mais de 100km/h. Preso em flagrante, foi liberado mediante pagamento de R$ 2,5 mil de fiança. Na semana seguinte, teve o pedido de prisão decretado e ficou preso quatro meses e 19 dias. Foi denunciado pelo MP por homicídio triplamente qualificado e lesão corporal leve e grave.
Em 12 de agosto de 2008, o TJ decidiu que Igor irá a júri popular. A defesa pediu a desclassificação do crime para culposo. Em 27 de novembro de 2008, desembargadores confirmam o dolo eventual, mas entendem que não houve motivo torpe nem recurso que dificultou a defesa das vítimas. O MP recorreu ao STJ, que ainda não julgou o recurso. Igor aguarda em liberdade.