Os grileiros que parcelaram a região de Vicente Pires ao longo das últimas duas décadas não deixaram espaço livre para que a cidade se consolidasse. Diante do alto número de condomínios irregulares ; são mais de 300 na antiga colônia agrícola ; é difícil encontrar áreas vazias onde possam ser construídos hospitais, colégios ou postos de saúde. A saída para o governo é negociar com os chacareiros que não cederam à grilagem e não lotearam suas propriedades. Mas a resistência é grande: eles temem ser prejudicados, mesmo diante da constatação de que foram justamente os únicos a cumprir a lei.
Até a construção de vias é um trabalho complicado em Vicente Pires. Pelo projeto urbanístico(1) elaborado para a região, há a previsão de ruas que passariam no meio de chácaras. A derrubada de algumas casas e obras é inevitável, já que em alguns locais não há espaço suficiente nem para os ônibus fazerem curvas.
A primeira proposta do governo, acatada pela comunidade, foi a de usar lotes vazios em meio a condomínios consolidados. Mas essas áreas não são suficientes para a construção de todos os equipamentos públicos necessários para a cidade. Dessa forma, a negociação com os chacareiros que não parcelaram ainda é um pré-requisito para a regularização do bairro.
Entre as ideias dos técnicos da União e do GDF está a cessão de parte das chácaras intactas em troca de alguns benefícios para os proprietários. O ocupante de uma área de quatro hectares, por exemplo, poderia doar parte do terreno e, em compensação, ter direito a um potencial construtivo maior. Assim, poderia construir um prédio ; o que valorizaria bastante o imóvel.
Mas, nesse caso, se os chacareiros abrirem mão de parte das terras, podem ter um problema. Isso porque o tamanho mínimo para que uma propriedade seja considerada terra rural é dois hectares. Se o dono ceder parte de um lote com esse tamanho, ele deixaria de ser um imóvel rural. As implicações são muitas: o preço dos terrenos residenciais é bem superior, os ocupantes têm que pagar IPTU; e a forma de venda também é diferenciada.
Tiago Melo, 30 anos, cresceu na chácara da família, próxima à Colônia Agrícola Samambaia. Lá, eles produzem frutas e mantêm uma extensa área verde. O chacareiro resiste à ideia de ceder parte de suas terras ao governo. ;Fomos os únicos que seguimos a lei e não loteamos o terreno irregularmente. Só queremos ter o direito de manter nossas áreas, que representam o único verde restante em Vicente Pires;, diz Melo.
Servidão
Os técnicos do governo também precisam de espaços que sirvam como áreas de servidão. Quando empresas concessionárias como as companhias de Saneamento Ambiental (Caesb) e Energética de Brasília (CEB) enterram parte de seus sistemas, os terrenos sobre cabos, fios e canos precisam ficar vazios, por uma questão de segurança. E esses lotes precisam ser públicos.
Como Vicente Pires está em terras de propriedade da União, todas as discussões para a legalização da área envolvem tanto o GDF como o governo federal. As terras serão vendidas pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), com a condição de que o dinheiro arrecadado com a venda dos lotes se reverta em obras de infraestrutura no próprio bairro.
O gerente de Regularização de Condomínios do GDF, Paulo Serejo, diz que os técnicos da pasta estão concluindo a elaboração de um termo de compromisso que será assinado com os chacareiros. ;Vamos formalizar nossa palavra de que nenhum chacareiro será prejudicado. Eles cumpriram a lei e isso será reconhecido pelo governo;, afirma Serejo. Segundo ele, porém, as formas para a negociação de cessão de parte das chácaras não parceladas ainda não estão definidas. ;Isso pode ser feito com um aumento no potencial construtivo para quem doar parte das terras ou até um abatimento no preço proporcional à área cedida. Vamos debater essas propostas.;
Benfeitorias
O chacareiro Sebastião Augusto Machado está apreensivo quanto ao destino de quem não parcelou terras em Vicente Pires. Desde 1986, ele tem um terreno de quatro hectares, onde hoje cultiva plantas e flores ornamentais. Ele reafirma o discurso dos vizinhos: ;O Estado não investiu nada aqui, foram os chacareiros que abriram as ruas e começaram cada obra de benfeitoria. Não é justo que quem agiu corretamente a vida inteira seja prejudicado;.
A Associação dos Chacareiros de Vicente Pires ; entidade da qual Sebastião Augusto Machado é presidente ; reúne-se semanalmente para discutir o futuro de quem não parcelou. Das 418 chácaras originais da região, apenas 92 ficaram intactas diante da onda de grilagem das últimas décadas. ;A manutenção dessas áreas é importante para a sociedade. A produção é variada, vai de flores e hortaliças a vinhos;, conta o chacareiro Walter Rezende, que cria pombos-correio em sua propriedade.
O processo
O projeto urbanístico é um dos primeiros passos para a aprovação de um novo loteamento. O documento determina a disposição exata e a quantidade de lotes do parcelamento e a localização de cada equipamento público. No caso dos condomínios irregulares, ele é essencial para a legalização das áreas.
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Chácaras não parceladas em Vicente Pires. Originalmente, a região tinha 418 propriedades rurais
Memória
Cinturão verde loteado
A Colônia Agrícola Vicente Pires foi criada nos anos 1960, pouco depois da inauguração da capital federal. A ideia era destinar áreas à produção rural, principalmente para o cultivo de hortaliças. Os produtos abasteceriam o mercado local e fariam parte da alimentação dos brasilienses. Ao todo, esse cinturão verde possuía 418 chácaras com tamanho mínimo de dois hectares (20 mil metros quadrados).
No fim dos anos 1980, com o crescimento do Distrito Federal, a pressão de especuladores começou a mudar a paisagem da colônia agrícola. Muitas chácaras foram parceladas irregularmente e as produções rurais deram espaço a centenas de condomínios. Os grileiros venderam os terrenos fracionados sem respeitar a lei de parcelamento do solo (Lei n; 6.766/79), que exige a aprovação prévia dos projetos ambientais e urbanísticos por órgãos competentes do governo. O desafio hoje é legalizar esses condomínios e preservar as áreas ainda não parceladas.