Cidades

Catarinense que queria vida cigana acompanhou demarcação das terras capital

Neifa Lorena era uma jovem padeira filha de italianos quando conheceu um topógrafo paulista. Quarenta dias depois, estavam casados. Alguns dias mais tarde, os dois começavam a vida em barracas de lona nas fronteiras do DF

postado em 02/12/2009 10:21
No carnaval de 1957, na pequena Orleans, em Santa Catarina, uma moça bonita, de 18 anos, filha de italianos, conheceu um paulista 11 anos mais velho, que tinha um jipe e uma estranha profissão aos olhos da garota: era topógrafo. Quarenta dias depois, às vésperas da Páscoa, Neifa Lorena Mattei estava noiva de Aldo Andrade de Menezes. Seis dias adiante, o noivo partia para Brasília e deixava uma promessa: voltaria para se casar e levar a noiva para a nova capital do país.

Neifa Lorena era uma jovem padeira filha de italianos quando conheceu um topógrafo paulista. Quarenta dias depois, estavam casados. Alguns dias mais tarde, os dois começavam a vida em barracas de lona nas fronteiras do DFNascida nas terras doadas por D. Pedro II ao genro, Conde d;Eu, como dote do casamento com a Princesa Isabel, Orleans guardava um amor imperial em sua história. Desde o noivado de Neifa, a cidade especulava: o topógrafo voltaria ou não para buscar a italianinha? Ele era um forasteiro que havia namorado a moça apenas 40 dias. Aldo passara três anos na região catarinense demarcando áreas de mineração. Por que iria voltar? A noiva esperava pelo noivo, mas ao mesmo tempo aceitava a ideia de ter sido abandonada: ;Se ele não voltar, não me deve nada;, ela dizia, antecipando a desilusão.

Antes de pedir a moça em casamento, o topógrafo avisou: ;Eu trabalho em Brasília;. Ela perguntou: ;O que é Brasília?; O noivo explicou que era um cerradão sem nada. ;O que é um cerradão?; Aldo então explicou que era uma aventura. ;Se você quiser se arriscar; Lá tem pouca gente. Você pode não se adaptar, você nunca saiu daqui;, atentou. Filha e neta de padeiros italianos, ela própria uma padeira, Neifa passara toda a vida trabalhando muito e saindo pouco. Nunca havia ultrapassado os limites da cidade. ;Vou com você pra qualquer lugar;, ela respondeu, e por duas razões fortíssimas: confiava naquele homem mais velho, tímido e determinado e, desde que um grupo de ciganos passara pela cidade, sonhava com a vida em acampamentos.

Nos seis meses seguintes, Neifa recebia do noivo bilhetinhos acompanhados de pacotes de revistas (Manchete, O Cruzeiro, Jornal das Moças) vindos de Brasília. Eram sinais de que ele cumpriria a palavra. Quando a encomenda chegava, toda a cidade corria à casa da noiva para folhear as publicações e, claro, para conferir se o casamento iria sair ou não. Até que um dia Neifa recebeu um telegrama: o noivo chegaria em 15 de novembro de 1957. Chegou quatro dias antes.

Na praia
Aldo Menezes, em 1971, com a inseparável máquina topográficaCasaram-se dois dias depois, em 13 de novembro. No mesmo dia, embarcavam para o Rio de Janeiro para uma rápida lua de mel. A italianinha levaria o primeiro grande susto: ;Nunca havia visto mulher de maiô, menos ainda de biquíni. E eu estava com um vestido sem manga, até no meio das pernas. Aí eu disse: ;Aldo, vamos embora. Não estou gostando disso aqui não, essa mulherada nua é feio demais.; Menos de uma semana mais tarde, os noivos chegavam a Brasília.

Instalaram-se num hotel em Luziânia e começaram então a vida como ela deveria ser. Topógrafo que demarcou os limites do Distrito Federal, o marido saía muito cedo, deixava a mulher ainda dormindo e voltava tarde da noite ou dias depois. Aldo Andrade de Menezes foi um dos mais importantes topógrafos da demarcação dos limites do Distrito Federal, da estrada de ferro Brasília-Pires do Rio, das asas Norte e Sul, de Sobradinho, de Brazlândia.

Num dia, Aldo deixou a mulher dormindo, trancou a porta do quarto por fora e levou a chave. Ela passou a manhã e a tarde trancada, esperando que em algum momento o marido se desse conta do que havia ocorrido. Isso não aconteceu, mas a dona do hotel percebeu a ausência da hóspede, bateu na porta do quarto e descobriu o que acontecera.

Foi aí que Neifa decidiu que iria acompanhar o marido aonde quer que ele fosse. ;Você quer acampar no meio do Cerrado? Tem certeza?;, ele perguntou. A italianinha estava segura do que queria. Na noite seguinte, o casal dormiu sob uma lona, em cama feita no meio do mato com quatro forquilhas, algumas ripas e um colchão comprado às pressas na Cidade Livre. ;Era uma noite linda, bem fresquinha, a chuva batendo na lona, a cama limpinha, o colchão, o lençol, o cobertor novo;, recorda.

Daquele fim de novembro de 1957 até que todo o Distrito Federal fosse demarcado, Neifa acompanhou o marido nos acampamentos montados no sertão de Goiás. Aldo Andrade de Menezes havia feito, em 1953, os primeiros levantamentos topográficos da região e que fizeram parte do minucioso Relatório Belcher, mais tarde utilizados para a fixação do DF e construção de Brasília. Voltara três anos depois, para a demarcação definitiva. Não mais sozinho.

Em barracas
Neifa vestida de cigana: vida nômade foi seu desejo atendidoLogo, a italianinha ficou grávida e mesmo assim continuou vivendo em barracas de lona com o marido. Aprendeu a fazer bolo em trempes feitas de molas de carro. Puxava as cinzas, enfiava a panela com a massa, punha a cinza de volta, abafava tudo e meia hora depois surgia um bolo estufado para o café da manhã do marido. ;Os homens almoçavam às seis da manhã e só comiam de novo quando chegavam, por volta das dez da noite.; Havia dias em que Aldo, muito cansado, se recusava a tomar banho. ;Você não vai dormir sujo de jeito nenhum;, a mulher reagia. Então esquentava uma lata d;água, mandava o marido se sentar num banquinho, jogava água nele com uma caneca e a Aldo cabia a tarefa de se esfregar para retirar a terra vermelha do corpo. ;Quando acabava, ele parecia outro. Tomava a sopa e ia dormir pra acordar bem cedinho no dia seguinte.;

Aldo e Neifa conheceram um ;Goiás perdido;, como ela diz. Encontrou goianos em condições miseráveis, abandonados e esquecidos. ;Costumávamos acampar perto de fazendas, pra ter mais proteção e poder comprar galinha, gado. ;Havia muita lepra por aqui. Eles chegavam na barraca, o Aldo ficava preocupado porque a Lucille era um bebê, mas eu dizia: ;Não posso deixar de servir um café a quem vem na minha casa;;. Neifa se lembra de haver conhecido, numa das fazendas, uma família de irmãos que tiveram filhos entre si. ;As crianças eram horríveis, andavam parecendo sapos;. Brasília, diz Neifa, ;fez muito bem a Goiás;.

O Brasil começava, finalmente, a retirar as populações isoladas do Centro-Oeste de seu estado de semibarbárie. Ao mesmo tempo, o país descobria belezas inesquecíveis. ;Era inacreditável. Bastava cavar um metro que a água brotava. Era uma maravilha. O Aldo dizia que a água era a graça de Brasília, pena que a invasão dos condomínios acabou com tudo;, observa. Seis anos depois da morte do marido, Neifa diz que ainda o ama. ;Aqueles dois anos acampados foram os melhores da minha vida;, revela a catarinense com alma de cigana.

Aldo e Neifa tiveram mais dois filhos, Carlos e Frederico. E um neto, Igor. Aldo morreu em 7 de agosto de 2003, aos 76 anos. Pediu que seu corpo fosse cremado e que o pó que dele sobrasse fosse jogado na Praça do Cruzeiro, ;onde tudo começou;, ele dizia. Igor tinha 11 anos quando o avô morreu. Escreveu uma carta onde dizia o quanto gostava de ouvir Aldo contar as histórias da construção de Brasília, o quanto ele era forte e inteligente. E lançou ao ar as cinzas de seu bravo candango.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação