É como se fosse um filme. Um filme bom. A história vem em capítulos. Como se fossem cenas. E se passa tão perto e ao mesmo tempo tão longe de Brasília. Um lugar distante de tudo que é moderno e acessível. Ali, não existem computadores. Até existem, mas apenas enfeitam. Eles não se conectam com o mundo. Não ditam moda, regras, tendência. Não falam. Entretanto, a despeito de tudo isso, ali, naquele pedaço de mundo tão longe e quase ao lado do poder, uma revolução invadiu a vida de seus moradores. Desde setembro, o melhor brotou naquele lugar onde o asfalto ainda nem chegou. Provavelmente nunca chegará. Aquele lugar fica quase onde nada existe.
Confira videorreportagem sobre o projeto de Sandra Alvarenga
Estamos na Escola Classe Cerâmicas Reunidas Dom Bosco. Onde? Que lugar é esse? Siga a BR-020, sentido Bahia. À altura do quilômetro 54, um homem vende laranjas no acostamento da estrada. Entre à esquerda, exatamente onde as laranjas estão à venda. Ali, o asfalto acaba. Pegue uma estrada de terra batida. Aprecie o milharal. E siga mais um pouquinho. À esquerda, uma placa enferrujada indica o endereço procurado. Você acabou de vencer 80km. É perto? Pertíssimo. Mas a distância não é geográfica. Entre. E prepare-se para uma emoção que só naquele lugar, repleto de jaqueiras, mangueiras, acácias, bálsamos, jambos e ipês, o visitante será capaz de sentir.
Longe de tudo que lembre tecnologia e modernidade, a vida renasceu em livros, histórias, fantasia e magia. E tudo isso está dentro de uma mala toda enfeitada. Entendeu? Claro que não. O filme bom está apenas começando. Na escolinha com chão de cimento bruto e paredes chamuscadas de um verde insosso, crianças descobriram um tesouro. Uma professora sonhadora, dessas em extinção, um dia lhes disse que havia um segredo para contar. Todos os seus 15 alunos se inquietaram. Cochicharam. Enlouqueceram. O que a professora teria para lhes dizer?
Numa manhã de outubro, ela chegou à escola carregando uma mala enfeitada. Dentro, estava o tesouro. O segredo tão esperado seria revelado. Os olhos das crianças se espicharam para saber o que a professora havia guardado. Por que o cadeado? Por que tanto mistério? Ela não lhe revelou. Fez um sorteio entre todos. O sortudo levou a mala para casa. Andou léguas, por estradas de terra, carregando a mala. Mal chegou correu para contar à mãe o que tinha trazido da escola.
Ao abrir a mala mágica, nome que eles mesmos deram ao segredo da professora, o menino se deparou com um mundo nunca antes visto. Havia livros, brinquedos e uma fantasia. Ele teria que escolher a obra que lhe agradasse e precisaria ler para recontar a história. Criar seu mundo, personagens, começo, meio e fim. Faria isso, na frente dos alunos, vestido com a fantasia. E assim, toda semana, um deles seria sorteado para fazer o mesmo. Mas o segredo continuaria. Aquele que levasse a mala mágica não poderia contar a ninguém da sala o que carregava.
O segredo se perpetuou. As apresentações revelaram leitores e escritores mirins em potencial. A imaginação não teve limites. O sucesso da mala tomou conta da redondeza. Envolveu pai, mãe, avó, avô dos alunos. A família inteira se juntou. A avó aprendeu as sílabas para ajudar o neto. Pai lavrador parou para ouvir histórias. Encantou-se com o que filho descobria naquele mundo cheio de letras. A mãe dona de casa ajudou a costurar pedaços de fantasia.
Renascimento
Há três meses, a escola de chão de terra e cimento bruto, isolada no meio de um mundo que ninguém vê, vive sua melhor catarse. Uma alegria entrou pelo portão enferrujado, pulou as mangueiras e coloriu a vida dos alunos e daquela professora visionária. O nome dela? Sandra Alvarenga, goiana de Formosa, casada, 46 anos, dois filhos e há mais de duas décadas no mesmo ofício.
Comovida, a professora que fez uma revolução com a sua turma da 3; série, confessa: ;Já cheguei a chorar, de tanta emoção. O retorno dos alunos é diário. Eles me escrevem cartinhas, me dizem que a mala mudou a vida deles. Tive uma aluna que fez promessa pra ser logo sorteada. Os pais participaram do começo ao fim. Experiência como essa nunca tinha vivido em todos os meus anos no magistério;. E ainda lamenta: ;Se eu soubesse, deveria ter começado com esse projeto há muito tempo;.
Sandra realmente sabe que esse momento é muito especial. Seus alunos também são muito especiais. Filhos de pequenos agricultores e lavradores, moram na redondeza. Espalham-se pelas fazendas e assentamentos da região. Alguns, para chegar às 7h à escola, acordam às 5h da madrugada. Andam horas por estrada de terra até que o ônibus da Secretaria de Educação os pegue num determinado ponto.
E, ainda assim, chegam ao colégio com sorriso de ponta a ponta. Os olhos brilham. Sobretudo quando carregam a mala cheia de segredos. Milena, 10, é uma delas. ;Eu adorei levar ela (a mala) pra casa. Quase não acreditei quando fui sorteada.; A avó, Maria Batista de Oliveira, lavradora de 62 anos, confirma: ;Ela chegou em casa e correu pra me mostrar. Queria que eu visse a mala, que ajudasse ela na leitura. Aí, eu lhe disse: ;Minha filha, eu tenho pouco estudo;. Ele me disse: ;Não, vó, a senhora vai me ajudar a fazer o meu personagem;. Ela fez um trabalho lindo;. Encantada com o mundo lúdico que a neta lhe apresentara, a avó revela: ;É como se eu tivesse voltado a ser criança;.
Sara, 8 anos, foi a última que levou a mala. Semana que vem, apresentará o seu trabalho para os coleguinhas. Dentro, a professora Sandra colocou a fantasia da Mamãe Noel. Sara é só emoção: ;Tô louquinha pra esse dia chegar;. A mãe dela, a dona de casa Eliane Souza, 27, é sua maior torcida: ;Ela me disse: ;Mãe, torce pra mala chegar aqui em casa. Ela só fala nisso;.
Andressa, 9, fez promessa para São José ; o protetor dos agricultores. ;Ela tava muito ansiosa. Todo dia rezava antes de dormir;, entrega a mãe, Rosana Miguel Cassol, 40. E conta mais: ;Até o pai tinha que ouvir a história pra dizer se tava boa. A mala mágica despertou a imaginação e a criatividade da minha filha. Ela teve o gostinho de criar e mostrar a sua própria história;.
Muito longe
Brasília, para a maioria daquelas crianças, é apenas uma miragem. Muitas nunca estiveram na capital. Tudo que sabem veem na televisão com antena parabólica. Erick, 10, queria conhecer o Zoológico. Francisco, 11, recém-chegado do Ceará, gostaria de ir à Catedral. Algumas delas chegaram a Planaltina, o mais distante onde estiveram. E foi ali, naquela zona rural, que os livros e toda a viagem que eles proporcionam desbravaram as estradas de terra. ;Lendo, eu me imagino no mundo que quiser;, diz a pequena Sara, que só este mês leu a Ovelha negra, Imaginação dos pássaros e vários contos infantis de Carlos Drummond de Andrade. Vinícius, 11, emenda: ;Ler é a melhor coisa do mundo. É melhor que ver televisão;.
Amaralis Mendes Rabaioli, 45 ; a diretora da escola com instalações bem modestas, quase artesanais, uma pequenina biblioteca e 163 alunos ; encantou-se com a mudança que a mala da professora Sandra causou no vilarejo: ;Foi mágico mesmo. As crianças passaram a ler e a escrever melhor. Mudou a nossa rotina;. A professora Sandra, causadora desse terremoto com sua mala mágica, quer mais: ;Espero que possa desenvolver esse projeto ano que vem. Que ele seja uma constante na escola;. E revela, orgulhosa da conquista da sua comunidade: ;Já tem escola particular de Formosa que quer adotar a mala;.
Sandra nunca fala eu. Por mais que toda a ideia e custos tenham partido dela, a professora sempre usa nós. É o plural que lhe agrada. ;O projeto é dos alunos, para os alunos e suas famílias. O envolvimento foi geral. E a emoção também;, comemora. Como num filme bom, a história chega ao fim. Aquelas crianças, tão perto e ao mesmo tempo tão longe de Brasília, descobriram um mundo mágico. Inventaram personagens. Voaram nas asas da imaginação fértil. Saíram dali. Foram muito mais longe do que as estradas de terra poderiam levá-las. E renasceram, em meio a letras, fantasias e fábulas inacreditáveis. Essa professora sonhadora não sabe o que causou, irremediavelmente, na vida dos seus pequenos alunos. É um filme sensacional.
Nobre causa
A Escola Classe Cerâmicas Reunidas aceita doações de livros. Contato: eccrdombosco@hotmail.com. Detalhes sobre a mala mágica? Professora Sandra ; 9985-6683 ou e-mail: sandraalvarenga63@hotmail.com