A psicóloga Lucíola Juvenal Marques preparava-se para levar os netos de 3 e 5 anos para lanchar, por volta das 19h do último 2 de outubro, quando foi abordada de forma violenta por três homens. Os bandidos anunciaram o assalto e circularam com os três no carro da família durante 30 minutos até largá-los no Setor de Mansões do Lago Norte apenas com as roupas do corpo. Enquanto conduziam as vítimas, os criminosos ; entre eles, um menor de idade ; ameaçavam verbalmente netos e avó, que passou todo o trajeto recebendo pancadas de um dos ladrões na cabeça.
Abalada pela experiência, a psicóloga de 49 anos levou algumas semanas para se recuperar, mas decidiu que não seria apenas mais uma vítima. Lucíola enviou e-mails contando sua história, buscou a ajuda de associações e descobriu que o crime de que ela foi vítima é recorrente no DF. Procurada pela psicóloga, a Subsecretaria de Defesa da Vítima de Violência (Pró-Vítima), da Secretaria de Justiça do DF (Sejus-DF), fez um levantamento dos sequestros relâmpago cometidos no DF neste ano. A pesquisa revelou que, desde janeiro, o crime foi cometido 549 vezes (veja quadro), apesar de não ser mais registrado como tal pela polícia. Nas contas da Secretaria de Segurança, contudo, ocorreram apenas 34 sequestros relâmpago no primeiro semestre.(1)
A Pró-Vítima costuma solicitar à Polícia Civil do DF (PCDF) os boletins de ocorrência referentes a homicídios, latrocínios e sequestros relâmpago, entre outros, para poder oferecer auxílio às vítimas. Mas, ao conhecer o caso de Lucíola e perceber que ele não havia sido classificado como sequestro pela polícia, a subsecretária de Proteção às Vítimas de Violência, Valéria de Velasco, estranhou. Desde abril, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei n; 11.923/2009,(2) o sequestro relâmpago só se configura no caso de extorsão, quando o criminoso usa o cartão de crédito da vítima para fazer saques (leia O que diz a lei).
Se o criminoso está interessado apenas em levar o carro ou outros pertences da vítima, ele responde por roubo com restrição de liberdade, um crime bem mais amplo. ;Se o bandido pegou a vítima para tomar o relógio e andou com ela por cem metros, já pode ser enquadrado por roubo com restrição de liberdade;, explica o delegado Leandro Ritt, da Divisão de Repressão a Sequestros (DRS). Segundo o delegado, desde que uma quadrilha de sequestradores foi presa em abril (leia Memória), a polícia não registra sequestros relâmpago no DF.
Direito violado
Para Ritt, o ladrão que realiza o sequestro relâmpago tal qual previsto em lei é mais especializado e o resultado desse crime, mais traumático para a vítima, porque o bandido vai circular com ela por vários bancos até conseguir o que quer. Mas, para a Pró-Vítima, o efeito de um sequestro relâmpago e de um roubo com restrição de liberdade como os 549 registrados neste ano é o mesmo (leia Palavra de especialista). ;Nos dois casos a vítima tem seu direito de ir e vir violado; tanto que, quando esses casos que coletamos chegam à promotoria, eles são tipificados no artigo 158 (leia O que diz a lei);, defende Velasco.
A subsecretária ainda finaliza a análise dos dados, que envolve um mapeamento das áreas onde os crimes são mais registrados, para encaminhar às autoridades sugestões de alteração na lei que beneficiem as vítimas. ;Por enquanto, definimos apenas a elaboração de um projeto de lei que obrigue a gratuidade da concessão de documentos no caso de apresentação do boletim de ocorrência, como ocorre no Rio de Janeiro;, adianta Velasco. Atualmente, a vítima que perde os documentos só consegue as segundas vias de graça depois de instaurado o inquérito do crime.
;Tive de pagar por todos os documentos;, lamenta o vendedor autônomo Anderson Pereira dos Santos, 30 anos, que teve o carro levado do estacionamento do Conjunto Nacional em 4 de setembro. Dentro do Golf estava um amigo de Anderson, que ficou em posse dos bandidos por uma hora e foi forçado a pular do carro em movimento. ;Depois do ocorrido, perdemos o contato. Ele se isolou;, lamenta o autônomo.
O tamanho do trauma para as vítimas que passaram por situações como essa pode ser medido pela história da professora Leila Marta de Castro, 50. Três anos depois de passar quatro horas e meia em posse de bandidos, a professora ainda sente as consequências do ocorrido. ;Tenho medo de chegar tarde em casa. Mudei de residência quatro meses depois do sequestro e passei um ano chorando sempre que contava a história;, lembra a professora.
1 - Balanço
De acordo com o último balanço da Secretaria de Segurança, publicado no fim de julho, no primeiro semestre deste ano a quantidade de sequestros relâmpago aumentou 30% em relação ao mesmo período de 2008 ; subiu de 26 para 34. Os roubos com restrição de liberdade subiram de 255 para 297 durante o mesmo período. O próximo balanço sai no fim do ano.
2 - Sanção
A Lei n; 11.923, de 17 de abril de 2009, acrescentou um terceiro parágrafo ao artigo 158 do Código Penal, para contemplar o crime de sequestro relâmpago, que passou a ser considerado extorsão. Até então, a conduta do sequestrador se enquadrava no inciso V do parágrafo 2; do artigo 157, que versa sobre o roubo com restrição de liberdade.
Palavra de especialista
Mesmo efeito
;Cada caso é um caso, mas o trauma permanece de qualquer forma, independente de o crime ser classificado como sequestro relâmpago ou roubo com restrição de liberdade. Para a vítima, ela está se sentindo extremamente ameaçada. É verdade que o fato de ela ter que acompanhar o bandido ao banco é diferente, no sentido de que a vítima pode ter de ficar mais tempo com ele, mas, na psicologia, a gente entende que é a mesma coisa. As pessoas demoram para voltar ao normal, cada uma de uma forma, porque cada um vai ter a reação de acordo com seu contexto de vida, com o comportamento do agressor, entre outras coisas. Muitas vezes, esse tipo de crime gera um medo constante. Temos casos até de fobias; a vítima não consegue sair de casa, se sente perseguida. Os traumas não são irreversíveis, mas o medo permanece.;
Lilian Valente Marinho, diretora do Atendimento Psicossocial do Pró-Vítima.
Perigo maior na Asa Norte
A equipe da Pró-Vítima ainda não finalizou a análise das ocorrências de sequestro relâmpago no Distrito Federal, mas já identificou a Asa Norte como a região onde o crime mais ocorreu neste ano. Só nos últimos três meses ; de setembro a novembro ;, foram registrados 12 casos nas quadras 400, cujos blocos não costumam ter garagem subterrânea. E o expediente relatado pelas vítimas é praticamente o mesmo. Elas são rendidas quando estão chegando ou saindo de casa e, depois de rodar em poder dos assaltantes durante um período entre 30 minutos e uma hora, são deixados apenas com a roupa do corpo no Setor de Mansões do Lago Norte.
Foi o que aconteceu com a jornalista Aline Santana*, 34 anos, no último 21 de setembro. Aline saía de casa, na 405 Norte, por volta das 18h30, quando um menino se posicionou atrás de seu carro. ;Parei de dar marcha à ré e vieram dois homens, um de cada lado;, lembra. Enquanto os dois assumiam os bancos da frente, o menor de idade puxava a moça para o banco de trás. Aline passaria todo o trajeto de 30 minutos até o Lago Norte com o rosto coberto por uma camiseta, enquanto o menino dava socos em suas pernas.
;Eles falavam que estavam armados, que eu só devia responder o que eles perguntassem;, conta a vítima, acrescentando que os assaltantes ameaçavam voltar a sua casa caso a polícia ficasse sabendo do crime. O carro levado pelos bandidos ; um VW Gol ; nunca mais foi visto, e a experiência mudou a forma de a jornalista se comportar. ;Sempre fico ligada na hora de sair de casa;, diz. O mesmo aconteceu com a arquiteta Joana Macedo*, 55, depois que a filha de 19 foi sequestrada com dois amigos na 208 Norte.
A estudante e os amigos ; um rapaz e uma moça ; foram rendidos na noite de 6 de outubro. Três jovens se aproximaram do carro ocupado pelos três e, depois de baterem no rapaz, puseram todos dentro do veículo e partiram, mais uma vez, rumo ao Setor de Mansões do Lago Norte. ;A arma carregada por um dos bandidos chegou a disparar na hora da abordagem. As meninas acharam que o amigo tinha morrido;, conta Joana, que se mudou para Brasília buscando fugir da violência de São Paulo.
Enquanto morou na capital paulista, a arquiteta colecionou seis assaltos. ;Fui roubada quando levava minha filha de quatro meses no colo e quando circulava com alunos pela Estação da Luz. Sofri um sequestro parecido com o da minha filha e, depois disso, ainda fui assaltada com um caco de vidro;, lembra Joana. ;Viemos para Brasília atrás de segurança. Estou assustada, mas São Paulo é muito pior;, compara. Depois do susto, a arquiteta pretende contribuir para a solução do problema na cidade. ;Para onde eu vou? Em vez de fugir, prefiro tentar colaborar. Se existem esses crimes é porque há miséria;, conclui.
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