Doze anos depois, a história será recontada. E é impressionante perceber como há sempre uma saída. E como tudo se movimenta, cresce e renasce. Em dezembro de 1997, a vida de Raimunda de Fátima Pinheiro era apenas incerteza. Aos 27 anos, ela acabara de dar à luz trigêmeas, no Hospital Regional da Asa Norte. Detalhe: só no sétimo mês de gravidez, sem o apoio do pai das crianças, a ex-doméstica soube, por meio de uma ultrassonografia, que não esperava apenas uma, mas três meninas. O mundo desabou.
Pelo baixo peso e problemas respiratórios, as trigêmeas prematuras quase não resistiram. Duas das recém-nascidas logo foram encaminhadas para a UTI neonatal do Hospital Regional da Asa Sul. A outra, ao Hospital Regional de Taguatinga. Os médicos, porém, não davam muita esperança à mãe. Apenas diziam: ;Tenha fé;. Raimunda de Fátima aprendeu a acreditar no impossível.
Dois meses se passaram. As meninas reagiram. Ganharam peso, fortaleceram os pulmões. Naquela UTI, cabendo na palma da mão da enfermeira, elas decidiram viver. O Correio acompanhou a luta sem fim da mãe. No dia em que a história foi publicada, a vida dela e de suas filhas começava a mudar. A população se comoveu. A ajuda veio de todos os cantos do DF. Dinheiro na conta bancária, fraldas, roupas, sapatinhos, berços, carrinhos. Tudo ao triplo. Enxoval completo.
Juliana, Júlia e Jackeline, respectivamente pela ordem de chegada, insistiram em viver. Raimunda de Fátima mudou-se de Taguatinga. Foi morar numa casa no P Sul, em Ceilândia. Para poder trabalhar, contou com a ajuda de uma irmã. Os dias de Raimunda de Fátima nunca mais seriam os mesmos.
O tempo, inexoravelmente, andou. Tudo mudou. Doze anos depois, o Correio reencontrou mãe e três filhas. Aquelas menininhas que lutaram para viver cresceram. Adolescentes, descobrem o mundo. A mãe, hoje com 39 anos, conta a batalha para chegar até aqui. Do P Sul, elas foram mais longe. Moram no Núcleo Rural Alexandre Gusmão, à margem da BR-070.
Raimunda de Fátima ganha a vida cozinhando de sol a sol para preparar marmitex. Solteira, transformou-se em mãe e pai. E nunca deixou que nada faltasse às filhas. ;Quando eu me vi sozinha, com as três nos meus braços, cheguei a perguntar a Deus por que tinha me feito aquilo. Eu não estava preparada. Mas acho que Ele sabia que eu daria conta.;
Dos três aos seis anos de vida, as trigêmeas univitelinas (geradas a partir de um só óvulo e, por isso, quase idênticas) frequentaram uma creche da Legião da Boa Vontade. ;Elas passavam o dia inteiro lá. Era o que me permitia trabalhar;, conta a mãe. Em casa, em alguns dias, só havia o básico para comer. ;Tivemos que regrar tudo. Elas entenderam.;
Semelhança
Em 2003, a família se mudou para o núcleo rural. De um outro relacionamento de Raimunda de Fátima, nasceu Ana Lúcia, hoje a caçula, com 6 anos. As trigêmeas cuidam da menorzinha como se mãe fossem. E fazem planos. Jackeline quer ser jornalista. Júlia, médica. Juliana, atriz. Passaram para a 6; série. Estudam na mesma sala e não é incomum os professores fazerem confusão com o nome delas.
Parecidíssimas, se divertem com a trapalhada. Mas as semelhanças param por aí. Nem roupa igual usam. ;A gente pensa cada uma de um jeito. Nossa personalidade é diferente;, apressa-se em explicar a mais falante delas, Jackeline, a que quer ser jornalista. Raimunda de Fátima define as trigêmeas: ;A Juliana sempre foi a mais vaidosa, danada e a mais briguenta. Tem sempre uma resposta pronta. A Júlia é a mais exigente. E, por ser assim, a mais estressada. Tudo dela é organizado. Jackeline é a mais calma, a mais tranquila, a preguiça da casa. Se tiver lendo um livro é o que basta;.
As três sapecas escutam a mãe falar. Riem. Confirmam as definições. Juliana não deixa por menos: ;Cada uma tem o seu estilo;. É a vez de Raimunda de Fátima ouvir. E ela olha para as meninas com admiração. Quase não acredita que a vida delas foi possível. ;Tudo que faço é pensando nas minha filhas. Trabalho sem parar pra que tenham uma vida melhor do que a que eu tive.;
E as danadinhas gostam mesmo é de jogar queimada. Largam tudo pela brincadeira. ;Mas só presta se as três jogarem. Quando falta uma, não tem graça;, decreta Júlia. Juliana quer ser atriz de novela. Jackeline, a futura jornalista, adora ler e escrever. ;Lendo, eu descubro as coisas.; Júlia já decidiu: ;Vou ser médica pra salvar vidas;.
Paixão frustrada
Entrando na adolescência, a vaidade aumenta. E isso, claro, desperta a atenção dos garotos da escola. Uma vez, um dos meninos apaixonados fez um bilhete de amor para Juliana. E ela? Ficou brava demais. Fez o pretendente engolir. E se ele estava realmente apaixonado? ;Se tava, não tá mais;, responde, com cara de ;não tô nem aí;. Jackeline jura que todas elas continuam BV. BV? (Sim, caro leitor, boca virgem) ;As meninas que beijam muito ficam com fama de beijoqueira e namoradeira;, explica Jackeline. E se arrepende da inconfidência: ;Não escreve isso aí, por favor;.
Agora que passaram para a 6; série, Juliana está toda prosa, se sentindo a tal: ;A gente não brinca mais de boneca. Depois da 5; série, amadurecemos;. Júlia intervém: ;Tudo vai ficar mais difícil;. Jackeline é prática. ;É só estudar.; Mas, por enquanto, a ordem é uma só: curtir as férias, viajar pra casa de uma tia em Goiânia, abrir o Orkut (elas não têm computador em casa) e jogar muita queimada.
Doze anos depois, Raimunda de Fátima se comove, como se fosse o primeiro dia: ;Tenho muito orgulho delas;. E lembra: ;Teve gente que na época chegou a me propor que desse as minhas filhas. Uma mulher do Lago Sul me ofereceu dinheiro. Disse que sonhava e ser mãe, mas não conseguia. E que eu tinha tido três, de uma vez só. Nem quis ouvir o resto;.
A moça que deixou o Maranhão para ser doméstica na capital escreve sua saga ao lado de suas filhas, as trigêmeas que emocionaram Brasília. ;Só quero que elas se formem, lutem para ser alguém na vida.; As espevitadinhas sorriem. Entreolham-se com cumplicidade. Uma entende a outra sem precisar dizer uma só palavra. E a vida continua ; a grande certeza. Como as histórias.
Testemunho
A história não acaba
Por meio de um projeto chamado Leitor do Futuro, crianças em fase escolar são convidadas para conhecer o jornal. Elas visitam todos os setores e depois transformam a visita em tarefa. Há 40 dias, foi a vez de uma escola de Ceilândia. Daquela turma da 5; série, fazia parte uma menina linda, de cabelos claros e olhos verdes. Ao entrar na redação, ela quis conhecer o repórter que, em 1997, contou a história do seu nascimento. Perguntou a todo mundo até chegar a mim. Ao se aproximar, ela me disse, olhando bem nos meus olhos: ;Você escreveu sobre mim e minhas irmãs quando a gente nasceu. Mamãe me contou tudo, eu li os jornais e ela mandou que eu procurasse você pra dizer obrigado;.
Doze anos depois, mesmo que me lembrasse da história (e me lembrava ainda com todos os detalhes), seria impossível reconhecer qualquer um daqueles bebês que cabiam dentro da palma da mão. Jackeline, das três, foi sorteada para visitar o jornal. As irmãs ficaram esperando ansiosas a volta dela, para saber as novidades. O mundo que conhecera no jornal.
Jackeline veio. Extasiou-se com uma redação lotada, a agitação dos jornalistas, o parque gráfico. Os olhos verdes ficaram ainda mais vivos e bonitos de felicidade. Ofegante, ela me contou seu maior segredo. Nem à professora revelara: ;Quero ser jornalista. Sou curiosa, gosto de saber das coisas;. Conversamos um pouco. Perguntei mais coisas, claro. Ela se despediu. Me abraçou e falou: ;Minha mãe e minhas irmãs queriam muito ver você;. Prometi que iria ao encontro delas. Fui.
Vendo aquela menina indo embora, percebi, nitidamente, mesmo que nunca tivesse dúvida, que as histórias de vidas alheias nunca morrem. Elas tomam eco. Criam vida própria. Não pertencem mais a quem as escreveu. Com a ação do tempo, a página do jornal desbota, mas nem assim morre. O entrevistado até pode se perder do entrevistador ; e vice-versa ;, mas o que foi contado fica. E, num dia qualquer, de repente, reaparece. E eu tive que escrever.