postado em 23/12/2009 07:44
Brasília abrigou, desde o começo, três qualidades de gente:
1) As que vieram participar de um projeto de Brasil e de cidade.
2) As que vieram para prosperar.
3) As que vieram apenas e unicamente para se aproveitar da situação e se dar bem.
Entre os arquitetos e engenheiros havia basicamente gente do tipo 1 e do tipo 2. O alagoano Carlos Magalhães é do tipo 1. ;Eu fazia parte, modesta parte, dos que fizeram seu trabalho e compreenderam o conjunto da obra. Eu devo a Brasília a minha formação. Ela estabeleceu meu caminho. Eu era um garoto da praia, um caiçara quando vim pra cá. Eu absorvi as lições de Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo (engenheiro de cálculo), Israel Pinheiro. Brasília não me deve nada. Sou eu quem devo a ela.;
Em Brasília desde 1959, Carlos Magalhães é um dos poucos arquitetos da primeira leva que continua na cidade. Desde então sempre esteve, de algum modo, dedicado à capital, seja no seu conjunto, seja acompanhando as obras de Niemeyer, a quem representa.
Secretário de Obras do governo José Aparecido de Oliveira (1985-1988), Magalhães retira da construção civil uma imagem para explicar o que vem acontecendo na política brasiliense. ;Essas pessoas (envolvidas no escândalo da Caixa de Pandora) se conhecem, se relacionam há muito tempo. Na peneira do tempo, a areia mais fina foi se separando da areia grossa, a que não serve pra nada, a que se joga fora. Essa areia grossa foi se juntando, uns foram se adaptando aos outros. Os puros, a areia fina, foi embora. E os que ficaram foram rejeitados, porque são limpos. Os sujos, a areia grossa, foram se unindo na ideia equivocada que têm sobre a coisa pública. Como bandidos, contaminaram tudo.;
Traumatismo
Brasília foi construída pela areia fina dos ideais coletivos. Quando se formou, em dezembro de 1958, na Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio de Janeiro, Magalhães quis muito vir para a capital, mas teve de esperar a hora certa. Desenhista, trabalhou no ateliê de Athos Bulcão, no Rio, e conseguiu que ele o levasse ao escritório de Niemeyer no Ministério da Educação e Saúde Pública. Naquele primeiro semestre de 1959, o arquiteto não estava em Brasília. Convalescia de um terrível acidente de trânsito que havia sofrido numa das muitas viagens de carro que fez entre Brasília e o Rio. Niemeyer teve traumatismo craniano.
;Quando cheguei ao escritório do Oscar, ele estava de óculos escuros (por conta do acidente). Disse a ele que queria vir pra Brasília e ele mandou que eu preenchesse uma ficha. Saí de lá sabendo que era conversa. Mandou preencher ficha, é conversa;, relembra Magalhães. Passado algum tempo, ele recebe uma carta do arquiteto Milton Ramos, ex-colega de faculdade que já estava na capital em construção. O chefe da 3; Divisão de Obras do Departamento de Edificações da Novavap, José Lafaiete Silviano do Prado, estava precisando de um arquiteto e com urgência. Uma semana depois, Magalhães chegava a Brasília.
Sua mais importante tarefa foi desenvolver e acompanhar as obras da Catedral de Brasília. Era um trabalho artesanal de construção civil, numa época em que não havia as facilidades da informática para resolver cálculos intricados como os das 16 colunas delgadas que se afastam na base e se aproximam na subida ao céu. ;Para botar de pé uma estrutura daquela é preciso ter uma competência especial. Não que eu a tivesse, mas eu tinha de enfrentar o problema. A Catedral me deixava noites sem dormir. Eu tinha de me fazer presente nas 24 horas do dia. Não que eu ficasse direto na obra, mas às vezes tinha de pegar o jipe e ir lá à meia-noite conferir uma ferragem, por exemplo.;
Medidas
De outras vezes, Carlos Magalhães ia ao Rio para checar medidas com Joaquim Cardozo. Quando teve de fazer as colunas, com 70 ferros de uma polegada na base, ele se angustiou. ;Como é que é isso, professor? Me esclarece a norma;, ele perguntou a Cardozo. ;Não tem norma;, respondeu o engenheiro-calculista. ;Nós temos que andar adiante da norma. Nós temos de ir avançando para a norma ir acompanhando a gente. Pra não deixar que pessoas que não têm competência para ir na frente da norma tentem fazer isso.;
Carlos Magalhães costuma brincar dizendo que o presidente da Novacap, Israel Pinheiro, foi um irresponsável quando o indicou para fazer a Catedral. ;Como é que ele pega um rapaz saído da escola pra fazer um prédio desses?;. Mas Brasília só existe porque forjou profissionais no exercício da necessidade, da ousadia e do enfrentamento do medo. ;Pra fazer a Catedral, tive de buscar conhecimento dentro de mim que eu não tinha.;
Israel Pinheiro, lembra Magalhães, tinha olhos de águia. ;Ele olhava dentro de você. Você baixava o olho porque aquele olho dele entrava dentro da gente. Eu não tinha medo do olho dele, eu sustentava o olhar dele, mas tinha medo da caneta dele. Ele sempre segurava uma caneta preta e eu tinha medo de que ele a jogasse em mim;, conta e ri. Quando Niemeyer reclamava de Israel (os dois se desentendiam muito durante a construção da cidade), Magalhães retrucava: ;Ele é tão importante quanto você. Se não fosse ele, vocês não teriam feito nada. Foi Israel quem botou Brasília de pé em três anos e pouco.;
Os acontecimentos recentes que escandalizaram Brasília têm deixado Carlos Magalhães mais Carlos Magalhães ainda. A palavra direta, a firmeza nos gestos e a luta em defesa do projeto que ele ajudou a construir continuam os mesmos aos 76 anos. Carlos Magalhães é areia fina.
"Quando cheguei ao escritório do Oscar, ele estava de óculos escuros (por conta do acidente). Disse a ele que queria vir pra Brasília e ele mandou que eu preenchesse uma ficha. Saí de lá sabendo que era conversa. Mandou preencher ficha, é conversa "
Carlos Magalhães, arquiteto
Carlos Magalhães, arquiteto