Écomo viajar no tempo. Um tempo que não é contado em horas. Ali, as horas já não fazem mais tanta diferença. Ou nenhuma diferença. A vida ficou guardada na memória. Fiapos de vida. Resto de vida. Ora lúcida. Ora turva. Mas que, em essência, foi ainda o que restou. São 10h30 de uma manhã ensolarada de uma sexta-feira. Estamos no Lar Francisco de Assis, no Núcleo Bandeirante. Os aviões, em procedimento de aterrissagem, voam baixo. Da varanda espaçosa enfeitada com uma árvore de Natal e guirlandas, a ex-doméstica Maria de Lurdes Diniz, 66 anos, se imagina dentro daquela coisa que voa. Ela só vê o avião do alto. Nunca esteve perto de um. Mas sempre pensa que está viajando. ;Eu imagino que ele me leva pra um lugar bem bonito. Eu acho que passei a vida querendo viajar;, ela diz.
É Natal. O asilo está decorado. Tudo muito simples, mas feito com carinho. Papai Noel, para alguns dos seus moradores, é mais real do que se possa imaginar. Existe de verdade. Maria de Lurdes se lembra de um tempo em que o velho barrigudo ia até a sua casa, nos confins de Minas Gerais. ;Eu ganhava boneca.; Da noite que se perpetuou na sua retina, Maria de Lurdes sente o cheiro do biscoito de arroz que a mãe fazia na noite de Natal. ;Até hoje, eu nunca me esqueci. Sinto o cheiro em sonho.;
Há mais de 20 anos, a ex-doméstica chegou ao asilo. Sem parentes, sem filhos, viu-se sozinha, depois de enfrentar uma longa depressão. ;Com a morte da minha mãe, eu quis morrer também. Fiquei muito triste a acabei sendo internada;, conta. Maria de Lurdes parou em hospitais psiquiátricos. Viu-se fora do mundo. Sucumbiu. Chorou sem que ninguém ouvisse o seu choro. A vida lhe roubou quase tudo. Menos a vaidade. Não abre mão dos colares coloridos, dos anéis e pulseiras. ;Eu gosto de me sentir bonita. Sempre procuro andar arrumada.;
Os aviões cortam o céu do asilo. Maria de Lurdes os observa. Sentada, imagina-se voando e olhando como a vida fica miúda daquela janelinha. O sonho do que nunca viveu a mantém viva. A noite de Natal se aproxima
Teresa de Jesus Araújo, 65, nasceu em Novo Mundo, na Bahia. Pelejou de sol a sol nas fazendas dos tios. ;Trabalhei na roça. Nem tive tempo de ter leitura;, lamenta. A ex-lavradora está triste. A melhor amiga do asilo morreu na noite anterior. ;Ela não tava bem. Teve uma parada cardíaca.; Teresa chorou. Sentiu um vazio que apertou o coração. ;Era como se o meu peito tivesse se partindo.; Teresa gosta de ajudar quem chega à casa dos velhos. Empurra a cadeira de rodas de quem não mais consegue andar.
A mulher que se criou nas fazendas dos tios vai passar o dia de Natal na casa de uma irmã, que mora no Núcleo Bandeirante. ;A Belita é mais moça que eu. Todo Natal ela me leva pra lá.; E ali Teresa passa o dia. Reencontra parte de sua história. No dia seguinte, volta. Ela sabe que sua casa é o asilo. ;A gente acostuma. Tudo na vida se acostuma.; Mas, enquanto o dia 25 não chega, ela só pensa na chegada do Papai Noel (voluntários vão ao asilo e distribuem presentes). Sim, Teresa acredita em Papai Noel. ;Toda vez eu fico alegre quando vejo o Papai Noel. Eu peço presente e ele me dá sandália e roupa.;
Na varanda, alguns idosos assistem tevê. Outros apreciam a árvore de Natal. Ninguém usa relógio. Mas se sabe que é quase hora do almoço.
Os aviões continuam cortando o céu do asilo. Teresa os observa. Não se imagina dentro deles, mas os vê passar todos os dias. Acha interessante como aquilo tão pesado consegue voar. A noite de Natal se aproxima
Valmir de Oliveira Xavier tem 61 anos e há 16 anos vive no Lar Francisco de Assis. ;Sou do Amazonas;, diz. Chegou ao DF para tratamento de saúde. ;Trabalhei muito tempo no garimpo. Mexi muito com mercúrio, no Rio Madeira. Acabei tendo enfisema pulmonar. Aí, vim procurar ajuda aqui no Hospital do Gama.; Da vida de Valmir, ficaram as lembranças do tempo em que serviu na Força Aérea. É o seu orgulho. ;Era soldado de primeira classe;, conta. Não restaram fotos. Tudo está impregnado na sua retina hoje afetada pela diabetes.
Sem filhos sabidos, ;diz que tenho, mas nunca vi;, sem compromissos, Valmir passou a maior parte de sua vida sozinho. ;Só trabalhei. Foi o que fiz a vida inteira.; Dos natais passados, apenas uma recordação: as ceias quando era soldado. ;A gente jantava no meio do mato. Era um momento de paz;, diz. Mas o tempo passou.
Há muito Valmir já não é mais soldado. E a vida lhe trouxe até aqui. ;Nunca cuidei de mim como deveria. E hoje tô aqui, num asilo. Quando a gente é jovem acha que esse dia nunca chega. Acho que tô vivendo o que mereço ser;, avalia, olhando para árvore de Natal armada na varanda.
De sandália de dedo, short e camiseta, Valmir ajuda no asilo trabalhando com pequenos reparos no lugar. ;Limpo, às vezes pinto uma coisinha que precisa. Até hoje não consegui me aposentar. Ainda bem que eles me acolheram aqui.; Sem parentes, sem referência, há mais de 40 anos Valmir não tem contato com os familiares. ;Eu nem sei se os que conheci ainda estão vivos. A vida foi me levando e eu fui com ela. Parei aqui.;
Os aviões insistem em voar bem baixinho pelo asilo. Valmir, no tempo que era soldado da Força Aérea, viajou muito pela Amazônia. Já não sonha mais em estar dentro de um deles. A noite de Natal se aproxima
Num Natal em que ela nem lembra mais a data, ganhou uma boneca azul. ;Era de plástico. Foi um presente que ganhei na escola.; Essa é talvez a lembrança menos nublada da vida da ex-copeira Francisca Rodrigues da Silva, 51. Nem idade tem para viver num asilo, mas está ali há 8 anos. Da infância pobre em Souza, interior da Paraíba, ela lembra do pai mestre de obras. Depois, a mudança para Brasília, quase no começo de tudo. ;Meu pai veio ajudar na construção;, ela diz.
Aqui, a família se instalou em vários lugares. Do Gama a Taguatinga. Foi quando Francisca começou a ouvir vozes. ;Aí, me internaram num hospital;, conta. De internação em internação, a vida se esqueceu da copeira. A família aos poucos foi desaparecendo. Nos natais, nos hospitais por onde andou, ela pedia bonecas para Papai Noel. O velhinho barrigudo nunca atendeu ao seu desejo.
Aos 43 anos, Francisca chegou ao Francisco de Assis. Ali, ela ganhou bonecas ; presente de voluntários que visitam a entidade. E fez de cada uma das bonecas as filhas que não teve. ;Esse ano, vou pedir mais boneca pro Papai Noel;, avisa. Depois, olha pro céu. E fala, como se estivesse sozinha: ;Queria aprender bordado;. Mas logo muda de assunto. E conta que é vaidosa: ;Sempre gosto de tá bem;. Mostra o brinco de pérola roxa, os três anéis que usa na mão esquerda, os dois na direita e as unhas pintadas de vermelho. ;Esse aqui (aponta para um anel na mão esquerda) é a minha aliança de casamento. Vou me casar com o Jonas.; E pede licença para interromper a conversa. Quer falar um poema que ela mesma criou. E diz, em ato solene: ;Escuta só. Eu fiz: ;Sou o que sou, nada mais;. Não é bonita?;
Os aviões continuam voando sobre o asilo. O barulho dos motores, em procedimento de aterrissagem, faz trepidar a imagem da televisão. Francisca diz que num deles viaja o Papai Noel que trará a boneca dela
Ele anda empurrando a sua cadeira de roda. A perna esquerda lhe foi amputada em decorrência de problemas circulatórios. A vida inteira foi pedreiro. ;Fiz de tudo na construção civil;, conta. Há 11 anos, o paraense Carlos Roberto Oliveira, 82, vive no asilo. ;Vivi com uma mulher durante 20 anos. Tive três filhos com ela, mas eles foram embora. Cada um tá vivendo a sua vida. Parece que moram em São Paulo. Vivo só. Hoje, só tenho Jesus.;
Dos bons natais, ele se lembra das comidas. ;Eu comia o que queria. Gostava muito da farofa e do pernil;, diz, com olhar perdido. Hoje, ele nem faz mais questão da festa. Do Papai Noel, quer apenas felicidade. ;Pra todo mundo.; O homem que passou a vida construindo muros e casas alheias nunca conseguiu construir a dele própria. Hoje, abrigado num asilo, comanda sua vida empurrando a sua cadeira de rodas. ;A gente nasce pra ser o que a vida deseja. Tá traçado o destino de cada um;, reflete.
É hora do almoço. Os aviões, de minutos em minutos, riscam o céu. Levam uma vida apressada que vai e volta. No asilo, onde as horas não mais importam, idosos contam o que as lembranças ainda não conseguiram desbotar
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