postado em 26/12/2009 08:33
Quando Vó Chiquinha começa a falar, o silêncio vai se expandindo ao redor. Ela fala baixinho, com a voz miúda, com os olhos voltados para dentro, como uma velha rezadeira de tempos remotos. A mineira Maria Francisca Alves de Souza tem 69 anos, mora desde 1956 na Candangolândia, salvo curto período na Vila Planalto. A sua história é a história de como viviam os povos do Brasil Central antes da construção de Brasília. Ela mesma é quem conta:
"Nasci debaixo de um pé de algodão, numa fazenda em Uberlândia. Minha mãe trabalhava na roça torrando café, fazendo farinha. Trabalhava por dia. Ela estava colhendo algodão quando sentiu a dor (do parto). Não estava muito longe de casa não. Nasci ali, debaixo do pé de algodão.
Minha mãe gritou o rapazinho que trabalhava na outra fazenda pra vir socorrer ela. Era pertinho, bastava pular o córrego. Ele arreou o cavalo, atravessou o córrego e quando viu o que estava acontecendo foi chamar a parteira, correndo, disparado. Ela veio com a carroça, já trouxe um cobertor, me enrolou com tudo nele e só cortou o umbigo quando chegou em casa. Foi assim que nasci.
Fiquei com minha mãe até 2 anos e pouco. Depois ela me contou essa história, mas eu não quis saber muito porque eu queria mesmo era encontrá-la e encontrei, mas não queria saber, porque era muito triste a história da minha mãe. Ela se chamava Constância. Ela ainda pegou um pouco do tempo dos escravos. Foi criada como escrava em Goiás Velho.
Minha mãe me contou que, naquele tempo (início do século 20, em Goiás), quando o peão ficava devendo muito, o dono da fazenda deixava ele ir embora se ele deixasse um dos filhos para servir de escravo, de preferência os mais novos. Foi o que aconteceu com minha mãe. O meu avô estava devendo muito para o patrão e ele deixou a mais novinha, que era a minha mãe. Ela tinha 5 anos. Foi tipo vendida, né?
Quando minha mãe tinha 12 anos ela se casou com meu pai. Ele era soldador de ferro. Viajava de acampamento em acampamento. Minha mãe começou a criar cedo. Quando ela completou os 13 já tinha um filho.
Meu pai vivia largando minha mãe e arrumando mulher escondido. Numa dessas vezes, ela estava grávida de mim, não tinha nem dois meses de gravidez, quando ele largou dela. Naquela época era assim: o juiz botava a polícia atrás do pai onde ele estivesse. E ele tinha que escolher: ou voltar para criar os filhos ou apodrecer na cadeira, e meu pai morria de medo de cadeia. Voltou com muita raiva.
Eu já estava nascida e ele cismou que eu não era filha dele. Ela tentava explicar que estava grávida quando ele sumiu, mas ele não queria saber. Ele tinha raiva de mim, me chamava de bichinho. 'Que é que é aquilo, Tância?, O que é aquele bichinho preto que está ali?' Ele me enxergava como se eu fosse um bichinho. Joga uma pedra naquilo lá, Tância. Meu pai era muito valente. Aí minha mãe me pegou escondido, arrumou tudo direitinho, escreveu um bilhete e me deixou num orfanato em Goiânia. Ela pediu que ninguém procurasse por ela, que era mais seguro pra mim.
Eu fui muito bem criada na creche das freiras. Quando as crianças estavam com 9, 10, 11 anos, vinham aquelas madames ricas pra adotar as meninas, pra criar como filha, não como babá ou empregada. As freiras colocavam a gente na fila e mandava as madames escolher. Quando eu tinha 9 anos, uma me escolheu. Para mim foi o céu. Fui muito bem criada, zelada. Tinha de cuidar de duas crianças, toda vida fui louca por criança. Minha caminha ficava no meio, berço de um lado e berço de outro.
Quando eu tinha 12 anos, eu estava limpando o corredor e tinha uma visita na sala. Não que eu estivesse escutando conversa dos outros, mas ouvi ela perguntando assim: 'Onde a senhora arrumou essa menina tão engraçadinha?'. 'Eu adotei na creche e estou criando ela, ela vai morar comigo até o tempo que ela quiser. Ela tem mãe viva, só não se sabe onde ela está'.
Ah, pra quê? Eu endoidei, endoidei tanto que fui pro banheiro chorar. Chorei, chorei. Naquele dia nada prestou mais. Não comia, não tinha vontade de mais nada. Daquele dia em diante, botei na cabeça que eu tinha de fugir com quem aparecesse que soubesse da minha mãe.
Eu estudava no colégio onde fui adotada. Eu tinha um cabelão bem grande, as tranças desciam. Tinha um homem que vendia balas. Ele trazia encomenda e sempre jogava um saco de bala para as crianças. Era Nilva, Boa Vista, caramelo, pipoquinha. Não sei o que deu nele que ele se engraçou de mim. Me dava saquinho de bala. Ele sumia e de repente aparecia com as balas. Comecei a me esconder, mas depois não aguentava e aparecia, interessada nas balas. Ele não podia se aproximar das crianças. Ficava fora da tela. Um dia ele puxou a minha trança pela tela e perguntou: 'Você é filha de quem?' Eu era meio arisca: 'O que o senhor quer saber?' Eu chamava ele de 'Velho'. Ele me dizia o nome dele, mas eu não guardava, levava tudo na graça.
Passou um tempo, eu já estava com 13 anos, e ele falou assim: 'Quer casar comigo?' E eu caía na risada: 'Casar? O que é isso?'. Ele tinha 49 anos. Se chamava Manoel Saulo Toneri da Ilha. Me disse que se eu me casasse com ele, ele faria o que eu quisesse, a coisa que eu mais quisesse. Meu sonho, eu disse pra ele, minha maior vontade no mundo, de tudo por tudo, era encontrar a minha mãe. 'Vamos andar o mundo inteiro, mas vamos achar notícia dela, viva ou morta. Só se eu morrer pra não cumprir essa promessa', ele disse.
Quando foi um dia ele foi conversar com a diretora do colégio. Passou um tempo e ele apareceu lá em casa. Conversou com a mulher que me criou. De repente, arrumaram tudo, foram no juiz e eu sempre perguntando: 'Escuta aqui. Essa história de casar, é isso que vocês estão arrumando?' E ele respondeu: 'É, vou me casar com você e você vai se casar comigo'.
Ele tinha um caminhão preto, de entregar balinha mundo afora. Depois que o juiz deixou a gente se casar, saímos por aí. De hotel, em hotel, de pensão em pensão, ele trabalhando e tentando encontrar a minha mãe. Não foi muito difícil porque ele conhecia muita gente e meu irmão tinha um bar em Anápolis. Pelo sobrenome, ele encontrou meu irmão. Andamos muito pra encontrar a minha mãe. Ela morava no Pau Terra. Fomos lá. Eu fiquei escondida e meu irmão entrou com ele. 'Mãe, a senhora se lembra daquela filha que a senhora pede de joelho pra não morrer sem ver ela? Tem uma visita importante pra senhora, é uma menina'. Ouvi ela dizer: 'Manda entrar'.
Quando entrei, ela me reconheceu, mas eu não conhecia ela. Aí, antes de me abraçar, ela teve um passamento. Deitaram ela, fizeram massagem no pulso com álcool e alho. Deram pra ela cheirar e aí ela foi voltando. E aí me abraçou, chorou, pediu perdão. Eu não sabia por que ela estava pedindo tanto perdão. Dessa época em diante, ela prometeu nunca mais se separar de mim, só quando morresse. E assim foi, ela morreu com 86 anos, em 1990, de pneumonia e depressão.
Ele (o marido) não gostava de Brasília de jeito nenhum. Viemos para cá em 1956. Tinham roubado a gente numa pensão em Goiânia. Ficamos só com o caminhão. A gente foi morar num sítio. A dona era uma estrangeira. Fiquei trabalhando com ela, e o Manoel foi fazer as entregas dele. Ele vinha e voltava.
Não sei dizer se ele (o marido) morreu. Eu estava pra ganhar neném, quando ele foi pra Belém receber um dinheiro. Tive hemorragia no hospital e fiquei 15 dias internada. Quando voltei, a vizinha me disse que ele não havia chegado. Fiquei sabendo de um acidente na estrada (Belém-Brasília), perto de Ceres. Dois caminhões com estudantes, um caminhão de arroz, um de madeira e o dele. Tudo caído perto do rio. Lá em Ceres, me disseram que uns corpos foram enterrados como indigentes. Eu queria um atestado de óbito, mas eles quiseram me dar um de desaparecido e eu não quis não. Fiquei doída. Eu não tinha mais ele.
Trabalhei muito, depois disso. Trabalhei de faxineira e merendeira na Escola Júlia Kubitschek e na Escola da Zoobotânica até me aposentar. Sou candanga, ajudei a construir essa cidade. Brasília é muito bonita, parece um presépio, né?"