postado em 26/12/2009 10:51
Chuva, cidade vazia, inimaginável Brasília, 25 de dezembro. É Natal. No ponto de ônibus da Estrada Parque Taguatinga (EPTG), uma mulher espera sozinha o ônibus que demora a chegar. Carrega um panetone na mão. Olha para a estrada vazia. Nem acredita na calmaria. A mulher fica para trás. Taguatinga se aproxima. O movimento incessante de carros e gente dá lugar a uma paisagem inacreditável. Nem parece uma sexta-feira. É Natal.
Sentada num dos bancos da Praça do Relógio, Priscila dos Santos, de 21 anos, dá o peito ao filho recém-nascido. Manoel, com um mês e 20 dias, mama com sofreguidão. Tem fome de viver. O pai de Manoel, Joel Oliveira, goiano de 28 anos, procura mais um cliente para engraxar os sapatos. A família deixou um albergue onde estão alojados para esperar por trocados no centro da cidade. "Até agora, só consegui engraxar um sapato. O moço me deu noventa centavos. Ontem (na noite de 24) nossa ceia foi um pouco de carne moída", conta.
Priscila continua amamentando o filho. O vento da chuva que se anuncia sopra forte. Ela tenta proteger o bebê com o pano no ouvido. "Hoje (ontem), é o nascimento de Jesus. É dia de comemorar", diz Joel. E segue, com a caixa de engraxate pendurada no ombro, sem saber o que vai almoçar. "Se eu conseguir mais freguês, a gente come. É uma luta todo dia." A mulher o espera, na expectativa de que alguma coisa melhor acontece naquele dia de comemoração. O leite que espirra do seu peito é a única certeza daquele momento. É Natal.
Na mesma praça onde a vida se agita e se mistura nos dias de semana normais, Sebastião Leonardo da Rocha descansa num dos bancos. Não há pressa. Olhar sereno, de quem contempla a vida, o mineiro aposentado de 64 anos é o rei daquele lugar. E ele nem mora em Taguatinga. "Minha casa é no Gama. É uma casa grande, de quatro quartos. Mas é daqui que gosto", diz. E insiste: "Sabe por que gosto daqui? Porque aqui não tem dono. É de quem chegar, quem sentar nos seus bancos". Planos não lhe faltam: "Vão inaugurar uma fonte luminosa na praça. Vai dar até pra dormir aqui".
No dia de Natal, o almoço de Sebastião estava dentro de uma velha mochila. %u201CEu trouxe café, bolo, água e uma marmita com comida. Saí bem cedo de casa. Só volto à noite%u201D, diz. E por que, no dia de Natal, ele preferiu estar na praça, sozinho? %u201CSou separado há mais de 15 anos. Tenho quatro filhos e seis netos. Eles (os filhos) moram aqui em Taguatinga, perto da praça, mas eu não gosto de incomodar eles. Prefiro ficar sozinho%u201D.
Sebastião, de tanto frequentar o lugar, diz que a Praça do Relógio é habitada por quatro tipos de pessoas: "Ela pertence ao deficiente, ao velho aposentado, aos pombos e à mulher que bota chifre no marido". Nesse momento, ele retira da mochila uma garrafa de café. A tampa da garrafa serve de copo. E saboreia a bebida, como se fizesse um brinde com o mais fino champanhe. "Eu bebi muito. Foram anos de alcoolismo, mas fiz tratamento para parar. Não bebo há mais de 30 anos", diz
Priscila, num banco perto dali, ainda sacia, com o peito farto de leite, a fome do filho. Sebastião, saboreando o café que trouxe de casa, define Natal: "Não tem dia certo, não. Acho que tem que ser todo dia, basta a pessoa querer. Todo ser vivente pode fazer Natal dentro do coração. O que adianta a festança do dia 24 se na manhã seguinte a pessoa continua ruim como sempre?"
"Vamos fazer amor?"
Abaixo da Praça do Relógio, cartão-postal de Taguatinga, prostitutas esperam clientes na porta dos muitos hoteizinhos baratos e malcheirosos da região. Num deles, sentada nas escadas que leva aos quartos, estava Lu - é assim que a loira de olhos verdes se identifica. Ao primeiro contato com o interlocutor, ela diz, quase mecanicamente: "Feliz Natal" Em seguida, completa a frase que deve repetir a cada um dos homens que a procuram: "Vamos fazer amor?" É o nome singelo que Lu chama seus programas.
Uma hora de amor com Lu custa R$ 25. Mas ela avisa: "Tem mais R$ 5 do quarto. Dez reais se o cliente quiser quarto com banheiro e televisão". Lu está cansada. Diz que não teve ceia nem presente de Natal. "Quando eu fui atrás de alguma coisa pra comer, tudo já tava fechado. Acabei comendo um churrasquinho e dormi." Lu, que aparenta ter perto dos 40 anos, é uma mulher triste. Visivelmente triste. Nem o verde dos seus olhos consegue amenizar as marcas do sofrimento que carrega. Diz que a família vive em Goiânia. "Eu queria tá com eles, mas não deu". É Natal.
Perto dos hoteizinhos ordinários, atrás de uma banca de revista, rapazes e moças consomem crack sem pudor. Preparam o cigarro ali mesmo. E um vaivém interminável de gente tentando mais um pouco da droga. Drogados, caem pelas calçadas, becos, esquinas da cidade. Taguatinga não os vê. Quem vê finge que eles não existem. E assim a vida segue. Nas escadarias do fétido hotel, Lu deseja fazer amor com o primeiro que dispuser de R$ 25 para pagar pelos seus serviços. Bêbados e moradores de rua dividem marquises e pedaços de chão, enrolados em cobertores puídos. É Natal.
Saúde
Longe do centro de Taguatinga, na Cidade Estrutural, a diarista Zenilde Rocha Aragão, piauiense de 46 anos, está feliz. Particularmente feliz. Os filhos e os netos foram para a noite de Natal no barraco apertado de madeirite. A ceia, que virou banquete, teve peru, pernil e farofa. Tudo presente das patroas em cujas casas chiques faz faxina. As netas, Maria Clara, 5, e Alice, 3, não ganharam presentes. Ansiosas e insones, esperaram a chegada do Papai Noel.
O velho barrigudo que mora no Polo Norte não conseguiu ir à casa delas, na Cidade Estrutural. "Eu pedi uma boneca que fala e panelinha pra fazer comida", diz a menina. Mas nem por isso a festa perdeu o brilho para elas. A patroa da mãe dela, que também é diarista como a avó, lhe mandou um radinho. Maria Clara exultou, como se fosse a boneca falante que não veio.
Zenilde comemora: "Só a gente tá com saúde e ter feito uma ceia boa já foi bom demais. Não tem muito pra pedir, não". Maria Clara se mete na conversa da avó: "O Papai Noel não veio ontem, mas ele disse que vem um dia. E vai trazer a minha boneca e da minha irmã". O avô dela, o borracheiro José Aragão, 45, disse pra ela que ano que vem o presente chegará. E tomou cerveja para comemorar a comida farta no barraco miserável.
Chuva, cidade vazia, inimaginável Brasília, 25 de dezembro. Foi Natal - para a mãe que amamenta o filho, para o homem que adotou a praça como sua, para a moça que troca sexo por dinheiro, para os viciados em crack, para a diarista, para o borracheiro, para a menininha que sonha com a boneca que não veio...