O sorriso de Iva Lorrane é de quem acreditou na vida. E só ela, como ninguém, sabe como é esse acreditar. Aos três dias de nascida, ela fez o primeiro vômito com sangue. A mãe de primeira viagem, uma moça de 20 anos à época, saiu de Paracatu (MG), às pressas, com a filha nos braços. Com ajuda de amigos da cidade, veio para o Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Os médicos suspeitaram que podia ser uma anemia profunda. Medicaram-na. O vômito cedeu. Iva voltou para a casa. Seguiu sua vida. Mas, miudinha, não ganhava peso nem crescia.
Aos 3 anos, com exames mais detalhados, novamente no Hran, a sentença: ela era portadora de uma grave, crônica e devastadora cirrose hepática. Só um transplante de fígado poderia salvá-la. Começava o drama da menina para continuar viva. Morando em Paracatu, ela vinha de tempos em tempos para exames no Hospital de Base (HBDF). Aos 7 anos, a segunda e terrível crise. Iva Lorrane novamente vomitou sangue. De ambulância, ela deixou a cidade. Ficou mais de um mês internada no HBDF, sob os cuidados da equipe da gastropediatria.
Iva, em meio a tanto sofrimento e incertezas, aprendeu a viver à espera de um milagre. A mãe, dividida entre Paracatu e Brasília, teve que se desdobrar para tomar conta dos quatro filhos menores. O tempo passou. Iva chegou à adolescência. Alternava momentos de melhora e piora no estado de saúde. Internações, complicações, exames. E a angustiante espera do fígado que lhe podia salvar a vida.
Em 19 de fevereiro de 2008, o Correio encontrou Iva, que havia completado 14 anos, media 1,32m, pesava apenas 22kg e tomava nove diferentes tipos de remédios por dia. Na casa de uma tia, no Guará II, a menina, com a voz pequena, debilitada pelo tratamento interminável e restrições alimentares, ainda conseguia fazer planos. Com a voz embargada, ela revelou: ;Quero estudar pra ser médica. Minha vontade é salvar a vida de outras pessoas;.
Durante as mais de duas horas da conversa, a adolescente falou da luta para viver e da esperança que a mantinha em pé. Junto dela, a mãe, incansável Ana Maria Martins de Melo, que abdicou de tudo, até da presença mais constante dos outros quatro filhos, para cuidar de Iva. Em meio às lágrimas de ambas, às vezes um sorriso. Um alento diante de tanto sofrimento. Na verdade, o amor incondicional de mãe e filha era a única certeza que havia naquela casa humilde, com paredes no reboco.
A reportagem sobre o drama de Iva foi publicada no dia seguinte ao encontro, em 20 de fevereiro. Naquela mesma manhã, o telefone para contato, no fim da matéria, não parou mais de tocar. Brasília se comoveu com a história da menina que precisava desesperadamente de um fígado. Paracatu, a cidade em que nasceu, conheceu a luta da moradora desconhecida. Formaram-se correntes de solidariedade.
A ajuda veio de todos os lados. Chegaram doações em dinheiro para a conta da mãe. Caixas do leite especial de que precisava ; custa R$ 130 e dava apenas o consumo de uma semana. E visitas, muitas visitas, de uma gente que apenas quis conhecer a menina, estar perto. Dizer que ela iria conseguir. Mesmo que fosse apenas para pegar a sua mão, dar um abraço. Gente que virou amiga e acompanha até hoje . Lágrimas encharcaram Iva e Ana Maria.
Como milagre
Iva continuava se dividindo entre Paracatu e Brasília. Internações e alta. Cada dia era um dia a menos de vida. Em junho do ano passado, uma médica geneticista de São Paulo soube da história da menina. Interessou-se pelo caso. Em setembro, contatos começaram a ser feitos com a equipe do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Em novembro, Iva e Ana Maria voaram, pela primeira vez, à capital paulista.
A viagem só foi realizada graças a essa corrente de solidariedade que se formou desde que o drama de Iva se tornou público. ;A gente ainda não tinha conseguido o TFD (tratamento fora domicílio, da Secretaria de Saúde). Mas as pessoas ajudaram e conseguimos comprar as passagens de avião e pagar a hospedagem no hotel;, conta Ana Maria. Partiram para a consulta que mudaria a vida de ambas. Os médicos descobriram, depois de exames complexos, que a mãe era compatível para doar parte do fígado (único órgão do corpo humano que se regenera). Iva venceu mais uma bateria de exames. A esperança aumentou.
Em janeiro deste ano, veio a segunda viagem ao Hospital das Clínicas, desta vez por meio do TFD. Tudo pronto para a cirurgia. Em maio, já internada em São Paulo, Iva teve uma grave crise de hemorragia. Entrou em coma. Três dias depois, numa sexta-feira, para espanto e comoção geral, melhorou. Na segunda-feira seguinte, ela foi submetida ao transplante. Era fazer ou morrer. Doze horas de cirurgia. Ana Maria doou 30% do seu fígado para a filha.
Horas depois do transplante, os médicos perceberam que Iva não estava bem. As artérias entupiram. Em consequência, parou de ir sangue para o fígado novo. A menina morreria a qualquer momento. Ana Maria, recuperando-se da cirurgia, cheia de dores em outra enfermaria, chorava ao saber do fracasso da tentativa de salvar a filha. ;Eu só pensava nela;. E avalia, sem hesitar: ;Faria tudo de novo pra tentar salvar a vida dela. Qualquer coisa;.
Imediatamente, a equipe do Hospital das Clínicas colocou Iva na fila nacional unificada de transplante. O caso dela passou a ser prioridade. O primeiro fígado que aparecesse, em qualquer lugar do país, iria pra menina que lutou 15 anos pelo direito de viver. Mais uma vez como milagre, 72 horas depois, chegou o fígado que a salvaria. ;Na verdade, apareceram dois, mas o compatível foi o de uma moça de 19 anos, do interior de São Paulo, que tinha morrido de acidente de carro;, conta Ana Maria.
Quatro de junho. Emergencialmente, Iva foi operada. Onze horas de expectativa. ;Foi o dia mais longo da minha vida;, lembra a mãe, hoje aos 33 anos, ainda em lágrimas. Horas depois, ao acordar da anestesia, ainda completamente debilitada, Iva pediu água para os médicos. A vida venceu a morte. Na enfermaria do outro lado, ainda se recuperando da cirurgia, Ana Maria chorou ao saber das boas novas. No dia seguinte, foi ao encontro da filha. Caiu em lágrimas. Iva pediu que a mãe não chorasse. Elas viviam um sonho do qual não queriam mais acordar.
Renascimento
Dias no hospital e chegou o dia da alta. Mas não para voltar para Paracatu. Iva e a mãe foram para uma casa de apoio na capital paulista, lugar que existe em função de voluntários e que abriga abnegadamente pacientes em tratamento de saúde de outros estados. Ali, Iva viveu de junho a até a última quarta-feira, quando retornou a Brasília. Do aeroporto, mãe e filha foram para o Guará, à casa de uma irmã de Ana Maria.
Lá, cartazes feitos à mão, pregados nas paredes da sala humilde, lhes desejavam as boas-vindas. Iva chorou. Ana Maria também. Agora, a ordem é continuar com o tratamento médico no HBDF. E viagens para revisão em São Paulo. Ela também fará acompanhamento neurológico ; depois da cirurgia, teve três crises convulsivas. Iva toma 14 remédios por dia ; medicação controlada para evitar a rejeição do fígado transplantado e fortalecer o sistema imunológico.
Com o sorriso de quem reaprendeu a viver, ou está vivendo pela primeira vez de verdade, Iva mostra a pequena máquina digital onde registrou os momentos vividos em São Paulo. Lá estão os médicos, as enfermeiras, fisioterapeutas e os muitos amigos da casa de apoio onde viveu por seis meses. Ao lembrar de uma dessas amigas, a Carol, transplantada como ela, Iva chora de saudade. ;Ela foi pra Aracaju, mas a gente vai se ver de novo;, planeja.
A equipe médica liberou Iva para viver. Ela voltará à escola ano que vem. Mas o que tem deixado a menina mais feliz é poder comer tudo que sempre sonhou. ;Não vejo a hora de comer um pão de queijo de verdade e galinha com angu;, vibra a mineirinha. Ana Maria está à procura de uma casa pra alugar em Brasília. A família terá que deixar Paracatu e viver aqui, em função do acompanhamento que Iva fará no HBDF. Vão precisar de ajuda novamente. Certamente virá.
Mas antes disso, mãe e filha viajaram, na tarde da última quarta-feira, para Paracatu. Passaram o primeiro Natal em que comemoraram a vida em toda a sua plenitude. ;Nunca vou conseguir agradecer todo mundo que ajudou minha filha;, diz Ana Maria. Iva se emociona: ;Todos são anjos;. E faz planos, para 11 de novembro de 2010: ;Será meu aniversário de 17 anos. Queria perto todos os médicos que cuidaram de mim e os amigos;.
A menina que aos três anos de idade recebeu um fatal diagnóstico lutou para que o impossível, como milagre, chegasse. Sangrou e chorou de dor e medo. Driblou a morte. Disseram que ela daria conta. A menina acreditou. E renasceu. Essa história é a certeza de que um ;fio de esperança; (título da primeira reportagem) pode mesmo virar um novelo de vida.