postado em 28/12/2009 08:53
Manoel Francisco da Silva faz fotos como se pintasse a vida. Na verdade, é o que faz de melhor. É sua melhor pintura. E o homem já se acostumou tanto a roubar a alma das pessoas (como acreditam os índios em relação à fotografia) que hoje, tanto ele quanto sua velha Polaroid, viraram um só. Manoel é um homem de sorte. Cresceu pegando enxada para plantar e colher. Hoje, bem longe da roça, a 75 metros de altura, tira retratos de uma gente encantada com a terra de JK.Entendeu? Não? Vamos lá. Manoel é um retratista dos bons. Na Torre de TV, há 35 anos, ele faz o mesmo ofício: tira fotografias de turistas e não turistas que visitam um dos cartões-postais da cidade. Com a máquina pendurada no pescoço, ganha a vida com trocados que recebe de uma gente que ainda guarda fotografias de papel. Manoel é um artista, desses que improvisam a vida. E acreditam que o melhor sempre vem acompanhando de um sorriso. É assim que seus ;modelos; aparecem nos seus retratos.
Mas nem sempre Manoel roubou a alma das pessoas. Houve um tempo, na distante São Bento do Una, interior de Pernambuco, que a labuta era debaixo de sol, pele queimada e mãos calejadas. Filho de agricultores, a infância foi a roça. Era preciso plantar para colher e sobreviver. ;Era pesado demais;, lembra. Um dia, já rapaz, Manoel descobriu que podia ir mais longe. Deixou a terra natal e partiu no primeiro ônibus com destino a uma cidade que só ouvira falar pelo rádio.
Era 26 de novembro de 1970 quando o homem da roça se enfeitiçou com a cidade planejada. ;Achei uma das coisas mais lindas. Vim com uma esperança tão boa de vencer na vida!”, exulta, ao recordar o dia em que pisou pela primeira vez em Brasília. Logo o emprego apareceu. Manoel foi trabalhar numa chácara, nos arredores da capital. ;Era pra tomar conta de um galinheiro.;
Manoel trabalhou dia e noite. O ano de 1970 findou. Em março de 1971, um Passat atropelou o homem da roça em Taguatinga. Foram 13 dias internado no Hospital de Base. ;Fiquei em coma. Saí todo machucado, sem segurança nas pernas, sem tino;, conta. Do coma de volta à vida. Manoel precisava trabalhar. As galinhas da chácara esperavam por ele. Era preciso chocar ovo para nascer pinto.
O ano de 1971 também chegou ao fim. Natal se aproximava. Na chácara, houve um sorteio de amigo oculto entre os empregados. E havia um prêmio especial. Aquele que tirasse a professora Herotildes (sim, Manoel aprendia as letras no curso Mobral) ganharia um superpresente. O sortudo arrumaria um emprego em Brasília. E não é que o mirradinho Manoel tirou a professora Herotildes?
Genival, o inspirador
E lá se veio o rapaz, para o primeiro emprego na cidade grande. Manoel virou vendedor de picolé na Esplanada e pelas quadras da Asa Sul. ;Não tinha nem carrinho pra empurrar. Tinha que carregar nas costas ou na cabeça;. Seu grito de guerra passou a ser conhecido na cidade: ;Olha o gelado;. Quando parava na Catedral, gostava por demais. Observava o vaivém de turistas, o encantamento deles diante da cidade de JK.
Mas o que mais lhe chamava a atenção era o trabalho de Genival. Quem? Isso mesmo: Genival, um pernambucano como ele. O homem era o retratista da porta da Catedral. Turista que se prezava levava um retrato feito por ele. Manoel se admirava com o que via. Um dia, cansado, Genival decidiu alugar o equipamento. Queria voltar à terra natal. E fez a proposta ao sorveteiro: ;Você fica com a máquina por três meses até eu voltar;.
Tinhoso, Manoel nem pensou duas vezes. Catou as economias e juntou os mil e quinhentos cruzeiros que tinha. Era o que Genival havia pedido. ;Aluguei a máquina sem saber nada. Nunca tinha feito um retrato antes.; Os primeiros dias foram tenebrosos para o sorveteiro que queria ser fotógrafo. ;Quando não cortava o pé era a cabeça da pessoa. Se deixava o pé ou a cabeça, cortava a cruz da Catedral. E católico que é católico quer foto com cruz. Eu não sabia nada.;
Manoel desconfiou que tinha que aprender. E muito. Mais uma vez o acaso se juntou a ele. Na porta da mesma Catedral, um maluco beleza daqueles anos 1970 passava dias e noites. O doidão percebeu o aperreio de Manoel na hora de tirar as fotos com a Polaroid de Genival. E lhe propôs: ;Eu faço os retratos e você chama o povo;. Trato feito. Observando o maluco beleza usar a máquina, Manoel foi aprendendo os truques da profissão.
Genival retornou de Pernambuco. Pediu o equipamento de volta. Manoel, que havia economizado 600 cruzeiros com as fotos que tirara e o restinho da venda de picolé, comprou, naquele fim de 1973, a primeira e usada Polaroid de sua vida. O homem que cresceu na roça e virara vendedor de picolé decidiu que seria fotógrafo na terra de JK. Começa aqui a segunda ; e mais emocionante ; parte dessa história.
Bem do alto
Com sua máquina tinindo de nova, pelo menos pra ele, Manoel descobriu que podia fazer fotos em outro canto. Chegou, em 1974, à Torre de TV. Mais precisamente ao Mirante. E lá, há 35 anos, continua fazendo o mesmo ofício. Chega ao local do trabalho de ônibus ou de metrô. E tira fotos de turistas loucos para se veem do alto. Nem as modernas máquinas digitais ou os celulares que fazem tudo conseguiram roubar o clique da Polaroid do retratista. ;O povo agora tá rico. Todo mundo, da doméstica ao pedreiro, tem uma máquina digital. Mas mesmo assim, quando eles vêm com a família, querem fazer foto comigo. O cabra gosta de ;se aparecer;;, ele diz, às gargalhadas .
O retrato custa R$ 10. E fica prontinho em dois minutos. ;Espero um pouquinho pra pessoa não se ver amarela. A foto precisa de tempo pra ficar boa. É como a vida, que vem aos poucos;, filosofa o homem que rouba a alma das pessoas do Mirante da Torre de Televisão. Sem câmera digital até hoje, Manoel tem uma teoria: ;Todo mundo que tem uma máquina dessa fica inseguro na hora de bater as fotos. E tem mais uma coisa: a digital é boa, mas não tem a qualidade do filme. E ele nunca se perde;.
Ao longo dos seus 39 anos em Brasília, Manoel encontrou aqui a grande companheira de sua vida. Casou-se, teve dois filhos e virou avô coruja de duas netas. E na peleja do dia a dia, o homem da roça que aprendeu a ser retratista na cidade moderna conseguiu juntar seu pezinho de meia (sem nela, na meia, meter dinheiro da roubalheira, é bom que se diga). ;Comprei duas casinhas em Ceilândia com muito esforço. Meus dois filhos estudaram. Se tornaram gente do bem.;
Sucesso total
Manoel é o ;cara; da Torre. Todo mundo o conhece. Dos artesãos que ali expõem seus produtos aos visitantes, principalmente os que voltam. Emília Gonçalves Brito Rosa, 52, que passeava com a família e turistas estrangeiros no último sábado, elogiou: ;Eu já tinha visto ele das outras vezes. É muito perseverante. Gosta do que faz;. A artesã Darlene Garcia, 40, emenda: ;Faça chuva ou sol, ele tá aqui. É muita força de vontade. Já fiz várias fotos com ele. A maioria ficou muito boa;.
Samuel Magalhães, 56, que também é artesão, teve um momento especial na sua vida registrado pela lente da velha Polaroid do retratista. ;Ele fez uma foto minha e da minha mulher, quando a gente namorava. Ela, que já morreu, tinha 14 anos na época. Acho que seu Manoel faz parte da história desse lugar.;
E lá se vai Manoel, todos os dias, carregando seu equipamento no colete surrado. As pilhas da Polaroid são presas por durex. Turista quer ver melhor? Ele logo empresta um velho binóculo. O passeio tem satisfação garantida. Em consequência do atropelamento que sofreu quando chegou a Brasília ; aquele que o levou ao coma no HBDF ;, ele arrasta discretamente a perna esquerda. Bobagem. Nada impede o retratista de seguir com suas andanças e sonhos.
Comovido, ele se assume extasiado com o traçado do Eixo Monumental e o horizonte da terra de JK: ;Brasília é o lugar mais lindo do mundo. Sou apaixonado por tudo isso aqui. Cada vez que vejo a cidade daqui do alto, aprendo uma coisa diferente. Nunca me canso de ver a beleza daqui do Mirante;. Ele se acha um bom fotógrafo? ;Claro que sim. Aprendi a fazer direitinho;. Essa é a história de um homem que plantou mandioca, criou galinha, viu pinto nascer, vendeu picolé e, como um sonho, virou retratista. Hoje, aos 62 anos, a 75 metros de altura, ele rouba alma de uma gente extasiada com a cidade de linhas retas e céu que parece tocar em Deus.