Cidades

A bravura da candanga

postado em 30/12/2009 07:03
No dia em que um gerente de banco chegou ao Bar e Restaurante Serra Azul, na Cidade Livre, e perguntou se a proprietária do estabelecimento queria abrir uma conta corrente, ele levou um baita susto. A goiana Maria de Lourdes Junqueira Edreira, 24 anos, viúva, quatro filhos, mostrou a ele quatro sacos de aniagem, com capacidade para 20kg cada um, abarrotados de dinheiro. Era a féria dos dias em que servia café, almoço e jantar aos forasteiros e novos candangos que chegavam, em grandes levas, à nova capital, no começo de 1959. A comerciante então confessou ao gerente: "Nunca entrei num banco, não sei como se abre uma conta, não sei como se preenche um cheque". Maria de Lourdes com a foto emoldurada do falecido marido, Nauro Esteves, um dos mais renomados arquitetos de Brasília: por conta do AI-5, tiveram de viver 15 anos fora da cidadeQuem ouviu a goiana de Ipameri anunciar sua falta de jeito com o sistema bancário podia pensar que ela era uma interiorana despreparada para viver na nova capital. Não era nada disso. Lourdes Junqueira havia aprendido, por força da necessidade, a se virar na vida. Criada pelas tias, casou-se aos 15 anos e foi ajudar o marido na fazenda do sogro. Até que ele decidiu, com um sócio, vir para Brasília. Montou o bar e restaurante no térreo do Hotel Brasiliense e foi buscar a mulher e os quatro filhos. Poucos meses depois, foi assassinado numa das vezes em que voltou a Ipameri. Maltratada pelo sogro, Lourdes decidiu ficar em Brasília. Ela, os quatro filhos (de 8 meses a 8 anos), a mãe e dois irmãos. Dez meses e quatro sacos de aniagem cheios de dinheiro depois, os irmãos se cansaram do excesso de trabalho e decidiram voltar para Ipameri. Lourdes arrendou o bar, comprou um lote na 706 Sul e decidiu arrumar um emprego. Conseguiu o cargo de responsável pela cantina das Pioneiras Sociais, a entidade filantrópica que dava assistência aos primeiros candangos. Golpe frustrado Um novo acontecimento iria mudar, mais um vez, o destino de Lourdes. Numa das noites em que pegou a Rural Willys, como fazia habitualmente, e anunciou que iria para casa, no Núcleo Bandeirante, um funcionário das Pioneiras Sociais recém-chegado pediu para acompanhá-la com a desculpa de que iria precisar do carro na manhã seguinte. Era um tempo de poucas mulheres na capital em construção. Quando a Rural chegou ao final da Asa Sul, o homem pediu que a motorista parasse o carro para que os dois pudessem conversar calmamente. Lourdes pressentiu o perigo, mas não acusou o golpe. Deixou que o passageiro descesse do carro e, quando ele esperava que ela também descesse, Lourdes avisou onde iria deixar o carro e foi embora. Deixou o novo candango sozinho, à noite, no ermo próximo ao Campo da Esperança. Não havia mais clima para continuar nas Pioneiras Sociais. Lourdes então foi à Novacap, empresa à qual era vinculada, e apresentou-se ao presidente da empresa, à época, Moacyr Gomes e Souza, como era de praxe. Quando viu aquela moça de calça de brim, camisa de manga comprida, tênis e toda suja de poeira vermelha, Moacyr reagiu: "A senhora não pode trabalhar aqui desse jeito". Além do trabalho nas Pioneiras, nas horas vagas Lourdes vendia lotes para a Novacap. "Expliquei que eu andava o dia todo de jipe, não tinha condição de vir de salto alto e meia fina." Alguém então lembrou que a secretária do Departamento de Urbanismo e Arquitetura (DUA) estava prestes a dar à luz. Lourdes arrumou assim um novo emprego, cujo chefe, o arquiteto Nauro Esteves, seria seu futuro marido. Esteves era o Israel Pinheiro da arquitetura. Muito exigente no trabalho, era "uma seda" no contato com a nova secretária. Lourdes ainda ficou algum tempo no barracão do DUA, que existia onde hoje é o Ministério da Justiça. Além desse serviço, da venda de lotes, da reciclagem de sacos de cimento e sobras de ferro, a goiana de Ipameri voltou a estudar. Foi uma das primeiras alunas do Elefante Branco. Fez vestibular para arquitetura, abandonou o curso, mas passou a desenhista de projetos. Para conquistar Lourdes, o chefe implacável revelou uma faceta até então desconhecida. A goiana viúva estava noiva, mas percebia que o rapaz não estava muito disposto a assumir os quatro pimpolhos. Ao mesmo tempo em que calculava se valia a pena continuar o noivado, Lourdes começou a notar que Nauro Esteves se aproximava muito dela e dos filhos, nas situações sociais. Quando o barracão do DUA foi transferido para salas térreas da 408 Sul, aqueles blocos sem pilotis, Lourdes foi morar no prédio ao lado. Mudança que facilitou os projetos do arquiteto. Assim, ficou mais fácil para ele conquistar os garotos. Tanto conquistou que foram os meninos que pediram a mãe em casamento para Esteves. Exílio Maria de Lourdes casou-se com Nauro Esteves e cuidou dele até a sua morte, em 2007. Nauro foi um dos mais importantes arquitetos de Brasília. São projetos dele, entre outros, o Hotel Nacional, o Palácio do Buriti e o Conjunto Nacional. Do tempo da construção, ela também guarda memórias femininas. Conta que naquele tempo, toda mulher, feia ou bonita, se sentia linda e maravilhosa, dada a escassez do produto. "Quando a gente passava por uma obra, era uma loucura. Eles assobiavam, gritavam, batiam na madeira." Até hoje, ela brinca que, quando está se sentindo por baixo, pensa em passar diante de uma obra da construção civil. Cassados pelo AI-5, por conta dos vínculos com o comunista Oscar Niemeyer (que não foi punido com essa medida restritiva), Nauro e Lourdes ficaram fora de Brasília entre 1970 e 1985. Beneficiados pela anistia, recuperaram o emprego na Novacap e receberam os salários do período em que estiveram afastados. Maria de Lourdes Junqueira Edreira Esteves, idade não revelada, quatro filhos, 13 netos e uma bisneta perto de nascer, mora na 308 Sul, a superquadra modelo, num bloco de cobogó, obra de João Filgueiras da Gama Filho, o Lelé. É uma brava candanga.

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