Seu Cid Torres, 80 anos, não costuma comentar com ninguém seus feitos na construção de Brasília. Ele foi um dos técnicos de laboratório de solo que ajudaram a avaliar a qualidade do cascalho usado para pavimentar a nova capital e a capacidade do chão de aceitar o asfalto. "Não gosto de contar isso, não. Vão dizer que, além de velho, sou mentiroso", ele diz e ri. Seu Cid até hoje fica "bobo" quando se lembra de tudo o que foi feito em tão pouco tempo.
Quando máquinas nunca dantes vistas começaram a roncar pelo sertão do nordeste goiano, Cid morava em Anápolis. Havia boatos de que eram os comunistas chegando ao interior do Brasil. Logo, porém, amigos o tranquilizaram: "Comunismo tem é na Rússia, Cid". Mas ele continuou intrigado e se perguntava: "O que será que está havendo?". Só quando ouviu no rádio a notícia da construção de Brasília, juntou uma informação à outra e imaginou que os caminhões, caçambas e tratores que chegavam a Goiás deveriam ser para a obra de Juscelino.
Pouco tempo depois, o mistério foi definitivamente esclarecido e o rapaz curioso passaria a seguir, por força do ofício, aqueles caminhões gigantescos durante os anos da construção da capital federal. Um amigo do pai dele, engenheiro da Companha Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), convidou-o para um estágio na Solotec Pavimentações. Em três meses, Cid aprendeu o ofício de técnico de solo e desde então testou e conferiu a qualidade do chão, da compactação e do cascalho que sustentam o Eixão, os eixinhos, as tesourinhas, as entrequadras e a BR-060, no trecho Anápolis-Brasília.
A construção de Brasília foi um laboratório intenso e frenético para as mais variadas profissões, em especial para as relacionadas à engenharia e à arquitetura. Depois do rápido estágio na Solotec, Cid Torres foi contratado pela Novacap e, nessa condição, foi trabalhar e morar à margem da BR-060, rodovia que estava sendo feita pela construtora Camargo Correia. O acampamento ficava no local que depois se transformou em Abadiânia, município de Goiás, a 100km de Brasília.
Ritmo intenso
Dois acampamentos foram montados onde hoje é Abadiânia: o da Construtora Camargo Correia, que fazia a obra propriamente dita, e o da Novacap, que incluía o laboratório de solo. Nele, Cid Torres e seis colegas faziam os ensaios de granulometria, compactação e limite de liquidez e plasticidade para averiguar a qualidade do cascalho, a capacidade de o solo se manter compactado e a de absorção de água. Parece uma tarefa que requeria pouco esforço físico, mas o trabalho dos técnicos exigia o suor de um operário. "Às vezes, a cascalheira ficava no alto de um morro, onde um caminhão não subia. Eu tinha de subir e trazer o cascalho, em sacos de 50kg, até lá embaixo", conta.
Quando chegou a Brasília, depois de concluída a análise de solo da BR-060, Cid Torres levou um baita susto: "Olhei pra tudo aquilo e pensei: ;Não tem cabimento, não tem como entregar tudo isso pronto até 1960, não tem quem faça isso;". Era final de 1958. Foi o máximo de espanto que Cid se permitiu. Daquele momento em diante, ele trabalhou como nunca antes e nunca depois para que a capital fosse inaugurada em 21 de abril. "Aí o batido foi duro. Não tinha domingo, não tinha dia santo, não tinha feriado, não tinha nada. Foi uma coisa horrível."
A tarefa de Cid era a mesma, testar a qualidade do cascalho das jazidas ao redor do Plano Piloto e a capacidade de assimilação de água e de compactação do solo das vias da nova capital. Além da extensão e da emergência do trabalho, Cid ficou impressionado com a quantidade de cristais que havia (e há) nas redondezas do Plano Piloto. "A Água Mineral era uma cascalheira. Foi preciso parar a retirada de cascalho ali onde hoje é a piscina nova por causa do cristal encontrado. Um cristal muito bom, muito bonito." O que não chegou a ser um problema, porque a região é rica em cascalho.
Choveu tanto em Brasília em 1958 e 1959 que Cid Torres ficou com a impressão de que o inverno candango se prolongou nos dois anos, sem interrupção. "Teve dia de eu fazer ensaio de densidade debaixo da carroceria de caminhão, como se ele fosse um toldo." As noites eram geladas, mas mesmo assim era preciso banhar-se. Cid ia para a margem do Córrego Vicente Pires, nas proximidades do Núcleo Bandeirante, e tomava o banho diário. Jantava no alojamento e, em seguida, com muita frequência, terminava de fazer os cálculos das análises de solo e preenchia os formulários que deveriam ser entregues às empreiteiras e à Novacap.
Casamento
Mesmo assim, teve tempo de engatar um namoro em Anápolis com a goiana Francisca. Até que, em meados de 1958, tomou a decisão: ;Chiquinha, você quer ficar noiva de mim?". Ao que ela, surpresa, devolveu a pergunta: "Cid, você quer ficar noivo comigo?". O novo candango foi claro: "Quero, se você quiser, né? Se quiser pensar primeiro, você pensa. Não posso ficar te levando nas festas. Você vai. Eu vou ter de voltar pra estrada. Só te peço uma coisa: se você achar alguém que fique gostando mais do que mim, é só me falar, não precisa dizer mais nada".
Viúvo há dez anos, Cid lembra: "Graças a Deus, em 1959 nós resolvemos nos casar. Casamos em 30 de dezembro de 1959". Chiquinha ficou em Anápolis e o marido voltou para o trabalho no caos de poeira e lama. "Eu usava uma botina Comando. Pisava no chão e a poeira vinha até a canela." A construção de Brasília foi uma vitória contra o vulcão de terra vermelha que brotava incessantemente do chão. "Quando eu estava fazendo análises lá pelo meio do Eixão Norte, os motoristas traziam a marmita. Ela vinha com tampa, coberta com um pano amarrado. Quando eu abria, a comida estava coalhada de poeira. Eu raspava aquilo e comia. Tinha de comer. Fazer o quê?"
Em 21 de abril de 1960, Cid Torres não estava em Brasília. Havia ido a Anápolis, buscar a mulher e a mudança. Instalou-se num barraco na Metropolitana. Depois, conseguiu um apartamento na 112 Sul. Aposentou-se em 1988 e hoje mora numa casa espaçosa do Condomínio Vivendas Campestre, no Grande Colorado. Deixará sua história como herança para os filhos (Simone, Sávio, Cíntia e Henrique), netos (Augusto, Caroline, Rui, Leandro, Debora, Sávio Júnior, Arthur, Bruno, Gabriel e Cauã) e para a bisneta Taíssa.
Cid Torres diz que não gosta de Brasília. Não explica bem a razão. Talvez, sugere, seja porque a cidade é muito movimentada para seu jeito quieto de viver. Mas de algum modo tem apreço por ela, tanto que ofereceu o Palácio da Alvorada de presente à noiva. Em foto de 1958, ele escreveu uma dedicatória para Francisca: "Este palácio talvez será seu algum dia, mas quem será o felizardo?" E assinou: Cid Torres. O felizardo.