Cidades

Carioca veio para Brasília a contragosto, mas logo descobriu a noite candanga

Jesiel Motta deixara no Rio o ambiente musical que tanto o atraía. Mas aqui conheceu os grandes nomes da Rádio Nacional e experimentou as aventuras de ser crooner de casas noturnas de tábua na terra da aventura

postado em 09/01/2010 08:32
O destino, quando está disposto, traça o caminho por linhas tortas, porém certeiras. Foi o que aconteceu com o adolescente Jesiel Motta, carioca de Bonsucesso, que um dia teve de acompanhar a mãe e os quatro irmãos num voo da Real Aerovias que o retirava definitivamente de perto do mar e o lançava num vasto território vermelho. A família Motta vinha de um triste rompimento: o pai havia perdido o patrimônio em jogos de azar, e a mãe decidira pela separação. Enfermeira do Ministério da Saúde, Liece decidiu vir para Brasília quando as obras nem bem haviam começado.

O que a princípio parecia uma tortura para Jesiel %u2014 sair do Rio %u2014 logo foi superado. Hoje, ele afirma: %u201CSou candango apaixonado%u201D;Poxa, mãe, você me tirou do Rio de Janeiro quando eu tinha uma carreira pela frente e me trouxe pra esse monte de terra vermelha?;, reagiu, revoltado, o filho mais velho. Jesiel, 17 anos, já havia decidido o que queria da vida: cantar. Participava de programas infantis no Rio de Janeiro, cantava em auditórios da Rádio Mayrink Veiga, tateava sua busca por um lugar no mundo da música. ;E tinha a praiazinha. Quando matava aula, ia tomar banho de mar na Ilha do Governador, tem coisa melhor do que isso?; Deixou tudo para acompanhar a mãe e os irmãos.

Veio morar numa das casas da Quadra 39 da Fundação da Casa Popular (hoje, 712 Sul). Os primeiros dias foram de indignação e vontade de voltar para o Rio. Aí o destino se apresentou: Jesiel foi morar na mesma quadra onde já viviam os músicos da Rádio Nacional, a emissora estatal que veio para Brasília bem antes de a cidade ficar pronta (Juscelino a inaugurou em 31 de maio de 1958). Em pouco tempo, estava na roda de maestros, locutores, músicos, cantores. ;Encontrei o maestro Pedroca, que era o Piston de Ouro do Brasil; o Xandoca da Bateria, o maestro Isac Koolman, toda essa gente.;

O jovem cantor se deu conta então de que Brasília o aproximara de músicos com os quais dificilmente teria contato naquela idade. ;Saí de uma quarta linhagem, que eram os programas infantis, e de repente me vi no meio desses monstros sagrados.; Menos de dois meses depois de ter descido do avião com vontade de pegar o primeiro voo de volta, Jesiel estava enturmado com os artistas da Rádio Nacional.

Teve de guardar o repertório dos programas infanto-juvenis, o rock and roll, os sucessos de Elvis Presley e o contrabaixo para aderir aos grandes sucessos do público adulto da década de 1950. ;Comecei a cantar coisas de Lupicínio Rodrigues, de Jamelão, de Dolores Duran. Passei a ouvir Maysa, a cantar Evaldo Gouveia, Trio Irakitan e os grandes boleros da época.;

EntrosamentoLembrança dos temposa áureps da cantoria na Cidade Livre
Pouco tempo depois da dramática chegada a Brasília, Jesiel Motta estava completamente integrado à noite candanga. E que noite. ;Ah, a Cidade Livre!”, Jesiel diz, expandindo as palavras e evocando, com evidente nostalgia, a vida noturna no território da aventura entre os anos 1957 e 1960. Jesiel revela uma atmosfera que a história oficial costuma omitir: os homens que construíram a nova capital trabalharam muito, mas se divertiram outro tanto.

Havia, na Cidade Livre, pelo menos quatro casas noturnas intensamente frequentadas pelo pessoal graduado da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), das empreiteiras e pelos aventureiros em geral. ;Anota aí: tinha a Night and Day, a Tirolesa, a Bossa Nova, o Olga;s Bar e a Chez Wiily.; Boates com salão, palco, mesas e atrás, escondidos, ;uns quartos para quem quisesse ir pra lá depois;. Bebia-se, dançava-se e frequentava-se os quartos desde o final da tarde até o início da manhã seguinte. ;Quem estava sozinho buscava abrigo nas boates. Havia também moças que vinham em busca de aventura.;

Todas as boates tinham pelo menos um conjunto musical próprio. Jesiel Motta cantava na Night and Day, com autorização da mãe e do Juizado de Menores, porque, apesar do 1,75 metro de altura, era um adolescente. Mesmo entusiasmado com as novidades que descobria a cada dia na capital em construção, Jesiel não parou de estudar. Do Colégio Dom Bosco, no Morro do Urubu, foi para o Colégio Marista e depois para o Caseb. ;Estudava de dia e cantava de noite. Cantar sempre foi o meu sonho.;

No tempo da construção e enquanto JK esteve no poder, Brasília oferecia vasto mercado de trabalho para músicos e recebia shows dos grandes ídolos da época. Jesiel se apresentava nos bailes da Orquestra da Rádio Nacional, no Brasília Palace Hotel, no Palácio da Alvorada. ;Como eu não era funcionário da rádio, recebia meu cachezinho;. Ainda em 1959, Jesiel criou um nome artístico, sugestão de um locutor: Harry Jones. Logo criou o Harry Jones e seu Conjunto, grupo de dublagem que foi responsável por um programa de televisão (TV Brasília) de grande audiência, o Eles cantam assim.

Com o fim dos tempos áureos da Cidade Livre, Harry Jones voltou-se inteiramente para o Plano Piloto. Foi crooner do pianobar do Brasília Palace e da boate Pilango. No começo dos anos 70, pegou o rumo do Norte e até 1976 cantou em Belém do Pará, com apresentações no Suriname e Caiena. ;Teve um período em que eu ganhava US$ 1 mil por apresentação;, lembra.Era a época da colonização da Amazônia, responsável por intenso movimento migratório do Sul para o Norte. Fez tanto sucesso que ganhou o título de Cavalheiro do Marajó.

Jesiel Motta/Harry Jones, 67 anos, soube aproveitar o que a vida lhe ofereceu. Teve dez casamentos, seis deles sem papel passado. Advogado com escritório montado, é presidente da Ordem dos Músicos de Brasília, tem três filhos (Viviane, Rogério e Renato) e cinco netos (Victor, Priscila, Carol, Giovana e Rodrigo). Exceto por um período de crise que viveu em Belém, nunca mais pensou em voltar para o Rio de Janeiro. ;Sou candango apaixonado;, define-se.

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