Cidades

Antigo apartamento de JK hoje é de uma professora

Há 12 anos, durante um chá oferecido pela primeira compradora do imóvel, ela começou a alimentar o desejo de viver ali

postado em 10/01/2010 08:47

Ontem, o quarto do presidente, hoje, a imensa sala de estar improvisada da professoraPara contar esta história, é preciso voltar no tempo. E será uma viagem que é um pouco ; ou muito ; da história do país. Apartamentos 602 e 603 de uma quadra nobre de Brasília. Eles, juntos, viraram um só. E foram construídos para abrigar um morador ilustre. Sexto andar inteiro. Antes mesmo de o bloco ficar pronto (a construção começou em 1957 e terminou em 1961), todos ali já sabiam que Juscelino Kubitschek moraria no local. Não mais como presidente da República. O homem que fez Brasília existir no meio do nada voltaria como senador pelo estado de Goiás. E voltou. Então, o último andar do então Bloco 11 da Superquadra Sul 208 seria exclusivamente dele.

Juntando os dois apartamentos (detalhe: um de cada prumada), somaram A porta de madeira trabalhada isolava o quarto de Juscelino e Sarah301 metros quadrados de área construída. O imóvel, vazado, contava com 12 janelas. Tinha até uma passagem meio secreta, no superarmário de oito portas do quarto principal, onde JK dormiria. Havia apenas uma entrada social e outra de serviço.

De um lado (o que seria um dos imóveis, o apartamento 602) ficaram os quatro quartos, suítes e as dependências de empregados, com mais dois pequenos quartos. Do outro, no 603, uma sala gigantesca, de 70 metros quadrados, e a famosa biblioteca de JK, que virou também seu escritório. Tudo foi preparado para receber o presidente bossa-nova. Em 1962, chegaram Juscelino e Sarah. O prédio estava todo habitado. Os moradores, Com a escritura nas mãos: na maioria gente ligada ao governo, tinham orgulho do tão importante vizinho. Dona Sarah, sempre muito discreta, cumprimentava todos. JK distribuía simpatia.

Com a renúncia de Jânio Quadros, João Goulart se tornara o presidente do Brasil. Anos depois, em 1964, veio o golpe militar. A ditadura se instalou. O presidente JK deixou o Brasil em junho daquele ano complicado. Exilou-se em Paris. Na capital francesa, morou num apartamento modesto de dois quartos. Sem motorista, dirigia seu próprio carro, um velho Simca. Na 208 Sul, o Bloco 11 seguia seu destino.

O superapartamento mudou de dono. Fora ocupado pelo então senador Arnon Affonso de Farias Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor, que Um dos banheiros, revestido em mármore Marta Rochaviveu ali quando era adolescente. A vida seguia, num país da repressão, censura, desaparecidos e mortos políticos. Os anos de chumbo se instalaram. Em 1964, a personagem desta história, que será apresentada logo a seguir, tinha apenas 16 anos.

O tempo passou. O país reconquistou a democracia. Fernando Collor foi eleito presidente da República. E colocou à venda todos os imóveis funcionais do DF. O gigantesco apartamento do agora Bloco A da 208 Sul foi comprado pelo empresário português Ferdinando Jardim de Miranda, o dono dos famosos tapetes Mendonça. A família morou ali por longos 33 anos. Segue a vida...

Chá pra Nossa Senhora
Há 12 anos, em 1998, a mulher de Ferdinando, Maria Ivone Carraro de Mendonça, católica fervorosa, devota de Nossa Senhora da Conceição, ofereceu um chá em sua grande residência. Convidou as amigas da quadra para que rezassem o terço. Entre elas, Sulimar Pinheiro Sulz Gonsalves (com ;s; mesmo) ; carioca, divorciada, três filhos, professora, moradora do Bloco I, então prefeita da quadra, também católica praticante e ex-moradora do Lago Sul. ;Sempre soube da história daquele apartamento. Quando entrei, fiquei fascinada pela vista. Adoro vistas;, ela conta.

A reza acabou. Sulimar voltou para casa, a alguns passos dali, encantada com o que seus olhos enxergaram do alto daquele sexto andar. E com o tamanho daquele apartamento. ;O corredor não tinha fim.; Quando foi embora, disse a si mesma: ;Se for dos desígnios de Deus, um dia esse apartamento será meu;.

A vida insistiu em andar. O casal Mendonça voltou para São Paulo. Decidiu vender o apartamento. Um amigo de Sulimar, que morava no mesmo Bloco A, correu para contar à professora que o imóvel estava vazio. Sulimar quase não acreditou. Era 20 de setembro do ano passado. Mas havia um detalhe de peso: como comprar um imóvel que custava R$ 2,2 milhões? Seria muito dinheiro. Mas eis que, de repente, um médico soube da venda do superapartamento.

Sulimar e o médico se encontraram e decidiram algo inédito: comprariam juntos o imóvel e o repartiriam ao meio, como seria originalmente. Acordo selado. Ela, na igreja, escreveu os dois números e os jogou pra cima e perto de Nossa Senhora de Fátima. ;Peguei três vezes o 602. Era pra ser esse mesmo.; Dias depois, o médico lhe contou que preferia ficar com apartamento ímpar, o 603. Em 9 de outubro passado, o negócio foi fechado em cartório. Em 10 de novembro, ela mudou-se pra lá.

A Sulimar coube R$ 1,1 milhão. ;O meu apartamento no Bloco I, todo reformado e avaliado em R$ 900 mil, entrou na negociação. O restante, completei com a venda de um imóvel que tinha em Recife.; Ao médico, restou a mesma quantia, R$ 1,1 milhão. Comovida, ela exulta: ;O apartamento veio a mim. Foram os desígnios de Deus;.

Acampamento
Na tarde de sexta-feira, o Correio conheceu, com exclusividade, a casa de Sulimar. Na verdade, ela está morando na base da improvisação. O vizinho 603 virou um canteiro de obras. Os novos donos precisaram refazê-lo por inteiro, já que nem banheiro ali existe. O 602, onde ficavam os quartos, nem entrada social tem. Chega-se pela porta de serviço. A suíte de JK e Sarah, provisoriamente, virou hoje a sala de Sulimar ; onde ela colocou os sofás e quadros, estes, ainda no chão, esperam um dia decorar as paredes.

Os armários são originais e profundos ; dá, sem exagero, para dormir dentro deles, folgadamente. As maçanetas, em acrílico decorado, da década de 1960, chamam atenção. Mostram o charme e a elegância da época. A banheira e o decorado mármore Marta Rocha do banheiro impressionam. O piso de taco continua o mesmo. ;E olha a visão que tenho da Ponte JK! Não é deslumbrante? Tô numa felicidade que acordo à noite me beliscando; extasia-se, com sorriso acolhedor.

No meio do corredor, antes de se chegar ao último quarto, o maior de todos, há uma porta de madeira trabalhada, dessas que se abrem ao meio, em duas partes. Era para deixar a suíte de JK e Sarah com mais privacidade. A chave que tranca a porta lembra o século passado. A área de serviço é a mesma. As instalações hidráulicas e elétricas, idem. Está tudo ali, igualzinho, mesmo gasto pela ação do tempo.

Alguns amigos de Sulimar acharam corajosa a ideia da compra, sobretudo pela enorme reforma que ela terá que fazer no imóvel. ;Era o sonho da minha vida. Viver aqui, ver essa paisagem, acordar ao som dos bem-te-vis e me deliciar com esse pôr do sol maravilhoso não tem preço.; A reforma, porém, só virá daqui a dois anos e meio. ;Por baixo, custará uns R$ 300 mil. Não tenho esse dinheiro agora. Preciso me capitalizar.;

Enquanto esse dia não chega, Sulimar ouve as histórias da simpática vizinha Francisca Medeiros, 75, viúva de José Medeiros Vieira, ex-deputado federal pela Paraíba e ex-ministro do governo João Goulart. ;Chegamos para morar aqui em 1961. Vimos tudo começar. O presidente Juscelino era muito simpático. O Collor, um rapazinho ;, ela diz, conservando ainda o gostoso sotaque paraibano.

E assim, ouvindo estórias da história real do Brasil e se deliciando com a nova velha casa, Sulimar faz planos: ;Não vejo a hora do meu primeiro neto nascer e correr por esse apartamento;, diz. ;O apartamento da minha mãe era perfeito, tinha 145m2. Ela tinha feito uma forma completa, com decorador. A cozinha tava linda, parecia de revista. Mas ela abriu mão de tudo pra morar assim, de forma improvisada. O importante é que ela tá feliz;, apoia a filha, Luciana Gonsalves Pinto, 38, moradora do Sudoeste e grávida de Rodrigo, o primeiro neto.

A porta de madeira bruta que isolava o quarto de JK permanecerá, mesmo depois da reforma. ;Acho linda.; E, no fim do corredor, onde há a divisão dos dois imóveis, a professora de inglês aposentada, hoje com 62 anos, fará uma homenagem a JK. ;Colocarei um painel com fotos dele. Sou fã até hoje.; Filha de um músico pernambucano radicado no Rio de Janeiro, Inácio Pinheiro Sobrinho ; conhecido nacionalmente como Pernambuco do Pandeiro, hoje com 85 anos ;, Sulimar chegou a Brasília em 1963, com a família. ;Meu pai, que mora na 410 Sul, veio a convite do presidente Juscelino para tocar na Rádio Nacional. Eles ficaram muito amigos. Papai tocava nas festas de dona Sarah.;

Naquele gigantesco apartamento de onde um dia JK teve que partir da noite para o dia, Sulimar quer apenas, sem pressa nenhuma, acordar com o canto dos pássaros nas suas amplas janelas e ver o neto correndo desembestado daqui a alguns anos. Essa história é, sobretudo, feita de sonhos.

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