postado em 13/01/2010 08:26
Na parede vermelha da sala de visitas, há um painel com fotos. Só dá ele: com os pais, irmãos, primos e a equipe do hospital. Andando pela casa com o novo par de tênis pretos que acabou de ganhar, o danado sorri. Faz cara de sapeca. Joga beijo. E quer subir sozinho na escada que leva para o quarto dele. Emocionada, assistindo a tudo, a mãe, Vilma Joaquina Freire, 36 anos, revela: ;Sempre me imaginei com o meu filho em casa. Exercitei minha fé todos os dias. Isso é a prova maior de que milagre existe;.Essa história é feita basicamente de fé. No sexto mês de uma gravidez absolutamente tranquila, uma ressonância de rotina indicara que o bebê tinha má-formação no esôfago e que provavelmente um dos rins não funcionava. Quando nascesse, passaria por uma cirurgia. Vilma chorou, mas acreditou que tudo ficaria bem. Em 15 de agosto de 2004, Ronaldo Oliveira Freire Filho, logo chamado de Ronaldinho, nasceu no sétimo mês de gestação. Expectativa no Hospital Anchieta, em Taguatinga. Só que, logo depois do parto, os médicos descobriram que o caso era mais muito mais grave.
O bebê tinha múltiplas más-formações. Além das localizadas no esôfago e no rim, havia comprometimento do pâncreas, do intestino e da coluna cervical. E mais: precisaria fazer reparos estéticos no órgão genital. Era impossível que sobrevivesse. Relatos da literatura médica apontam que crianças que nascem com tantas deficiências congênitas não conseguem passar dos 30 dias. Uma equipe multidisciplinar do hospital se juntou para tentar salvar a vida daquele bebezinho. Todos, principalmente aquela gente de jaleco branco, sabiam que o risco era grande.
Vilma e o marido, o bancário Ronaldo Oliveira Freire, hoje com 37 anos, foram avisados da gravidade do estado de saúde do bebê. O casal, que já tinha dois outros filhos, chorou junto. E toda a família se juntou na mesma luta. Em menos de 48 horas de nascido, Ronaldinho foi submetido a duas cirurgias para reconstrução do aparelho digestivo. Resistiu a todas. Aos quatro meses de vida, o terceiro procedimento cirúrgico ; uma abertura feita no pescoço para melhorar o fluxo da saliva. A UTI neonatal passou a ser sua casa. E assim seria por longos e imprevisíveis dias.
Ronaldinho venceu sucessivas pneumonias. E a vida se limitou a um respirador. Um pneumologista chegou a dizer à mãe que, muito provavelmente, ele jamais conseguiria respirar sozinho. O calvário aumentava. Aos 10 meses de vida, o bebê enfrentou a sua quarta cirurgia: uma traqueostomia, para facilitar a entrada de ar. Em 3 de novembro de 2006, a quinta: a construção da abertura extrema do aparelho digestivo (reto e ânus). Quatorze dias depois, a reparação desse mesmo procedimento. Em maio de 2007, a sexta: fechar a colostomia.
Notícia no Brasil
No Anchieta, cada procedimento cirúrgico era comemorado por médicos, enfermeiras e auxiliares. Vilma e Ronaldo vibravam. Só reforçavam a fé que possuíam. Ronaldinho passou a ser um exemplo de luta ; até mesmo para pais com filhos também internados no mesmo hospital. Sua história começou a ser conhecida em todos os cantos. Ele nasceu no Anchieta e dali e nunca saíra. Não conhecia sua casa nem o quarto verde que os pais lhe haviam preparado. ;Mas a gente nunca cansou de acreditar que esse dia ia chegar;, diz a mãe.
E chegou. Em 27 de março de 2008, depois de três anos e sete meses vivendo naquele mundo, o menininho que se agarrou à vida e fez doutores repensarem o que já sabiam deixou o hospital. Passou a ver o mundo além das janelas daquele lugar. A saída do bravo paralisou tudo. Choro da equipe médica e funcionários. Aplausos para a vitória de um guerreiro. Fotos, flashes, câmeras. Toda a imprensa acompanhou a despedida dele. Foi assunto em Brasília e no Brasil. Serelepe, o espevitadinho ria. ;Mesmo na UTI, ele era quem nos dava força;, diz o pai.
Ronaldinho chegou em casa, no Residencial Santos Dumont, em Santa Maria. Houve festa. Toda a família o aguardava. Os vizinhos também. O quarto verde o esperava. Os irmãos, Hebert, hoje com 11 anos, e Hadassa, 7, não esconderam a emoção. Lágrimas, misturadas a risos, celebraram aquele momento único. ;Foi o nosso sonho concretizado. A gente pedia isso a Deus em oração;, conta Vilma.
Na manhã de ontem, o Correio voltou àquela casa, depois de um ano e 10 meses. Ronaldinho, 5, brincava na varanda. Estava numa animação de dar gosto. Vilma deixou o emprego num banco e passou a ser mãe em tempo integral. Ronaldo, o pai, trabalha agora mais do que nunca para que nada falte à família. Graças ao plano de saúde que possuem, Ronaldinho faz uso de home care ; atendimento médico domiciliar.
Assim, tem à disposição uma técnica de enfermagem por 24 horas e a visita de um médico uma vez por semana. Conta também com balão de oxigênio e aparelhos para monitorar pressão e batimentos cardíacos. Por isso, desde o tempo em que voltou para casa, só retornou ao hospital três vezes ; para tratar de uma pneumonia, uma otite e uma sinusite. ;Se o governo colocasse esse sistema à disposição da população carente, muitas crianças não viveriam anos ou a vida toda em UTI. E ainda seria mais barato para a rede pública;, observa Vilma.
Criança feliz
Flamenguista roxo, como o pai, Ronaldinho adora assistir a jogos de futebol pela TV. E também não perde tempo quando escuta música, mesmo com um pequeno problema de audição provocado por tantos remédios que tomou ao longo da pouca vida. Ensaia uns passinhos e rodopia na sala. Quer mais novidade? Ele irá à escola pela primeira vez. E começa a dizer as primeiras palavras. ;Meu filho tem olhos de quem é feliz;, repara a mãe. Ainda com a traqueostomia, ele precisa se submeter a mais duas cirurgias: uma no esôfago (assim eliminará a sonda que usa na barriga para se alimentar) e uma correção estética da genitália. ;Ele vai vencer mais essa etapa;, aposta a incansável Vilma.
Ronaldinho também sabe que dará conta. E continua rindo. Beija a mãe. Marinalva da Silva, 28, a técnica de enfermagem, endossa: ;Não tem momento difícil pra ele. Às vezes, chego meio cansada e ele vai me esperar na porta, me abraça e sorri pra mim. Eu acho ânimo na hora;. Vendo a disposição do filho em viver, Vilma se comove mais uma vez: ;Todo sofrimento foi transformado em alegria. Nossa família ficou muito mais unida;.
Dois dias antes de Ronaldinho deixar o hospital, a médica Débora Tessis, pediatra intensivista do Anchieta, uma das que cuidavam dele (e ainda cuida), não escondeu as lágrimas ao falar dos momentos mais difíceis desse menininho que provou ser possível fazer o impossível. Para justificar a emoção, ela, que é mãe de dois filhos, admitiu, numa sensibilidade incomum e humana demais para essa gente de jaleco branco que às vezes se acha Deus: ;Eu não me protejo de sentir;. E continuou, ainda enxugando as lágrimas: ;O ser humano é maior do que a doença. O Ronaldo não tem limites, porque é maior do que as limitações que a vida lhe deu;. Esse, sim, é um fenômeno, no melhor que a palavra puder exaltar.