Cidades

O alfaiate de Brasília

Ele nasceu no sertão da Paraíba e, num pau de arara, aos 16 anos, deixou sua terra. Parou em Anápolis, onde aprendeu a transformar pano em roupa

postado em 17/01/2010 08:32

O bravo paraibano Geraldo (C) com os ajudantes, Carlos Gardel Brasileiro (E) e Milton Stanciola, no ateliê do Setor Comercial Sul: este é o pequeno e grandioso time que faz roupa virar arteA conversa começou assim: ;Alô, eu queria falar com o seu G. Marques;. Do outro lado da linha, uma voz firme e pausada responde: ;É ele mesmo;. O interlocutor prossegue: ;Aqui é do Correio e gostaríamos de fazer uma matéria com o senhor, para contar a história do alfaiate de Brasília. O senhor deve ter muitas...; Ele sorri e diz, sem esconder ainda o gostoso sotaque nordestino: ;Ah, a conversa vai ser comprida demais. Começou lá no sertão da Paraíba;. E emenda, marcando o encontro para as 15h: ;Vou receber o senhor como primeiro-ministro;. Primeiro-ministro?

Lá estávamos, britanicamente, às 15h. O homem de cabelos brancos vestia terno de risca de giz bem-cortado, gravata e camisa branca de linho. Nos pés, sapatos marrons engraxados. Ele aperta a mão do visitante com altivez. Anda empinado. O homem, de fato, tem pose de lorde. É um primeiro-ministro. Naquelas duas salas do Edifício JK, no Setor Comercial Sul, tesouras, linhas, tecidos e máquinas explicam e contam a história de um certo alfaiate chamado Geraldo Marques. Melhor: G. Marques.

Patos, sertão da Paraíba, 1929. Ali, nasceu o menino, filho de um agricultor e de uma costureira. A vida seria como a de todos os meninos. A roça, o trabalho. O futuro? Como o do pai. Mas ele queria mais. O tempo andou. Em 1945, a Segunda Grande Guerra Mundial acabava. Geraldo completara 16 anos. E se encantava com a maestria de um certo José Medeiros, o alfaiate da cidade, em transformar pano em roupa.Palavras de quem entende do ofício:

O menino pediu àquele homem para fazer o mesmo. José Medeiros lhe deu a primeira chance de sua vida. ;Comecei na oficina de alfaiate;, diz. E logo estava às voltas com costuras e barras de calças. ;Depois, passei a fazer as entretelas (parte que reforça o paletó). Fui desenvolvendo.; Um funcionário do velho José Medeiros um dia sapecou: ;Esse menino é curioso;. E o menino tomou gosto pelo ofício.

Ainda aos 16 anos, com o primário incompleto, Geraldo embarcou num pau de arara, com o irmão mais velho, rumo a Goiás. O irmão intuiu que ali seria bom para montar uma loja de molas pra caminhão. Partiram e pelejaram dias e noites até avistar Anápolis. Chegaram. Antônio foi cuidar de suas molas. Geraldo, com o pouco que juntara na vida, abriu uma camisaria. ;Queria continuar na profissão de alfaiate. Era o que já sabia fazer.; O menino da roça começou a cortar pano no interior de Goiás. E a coisa foi dando certo. ;Fui crescendo;, ele diz, vaidoso.

As responsabilidades eram tantas que o menino virou adulto antes do tempo . Geraldo viu as encomendas aumentarem. ;Fui a Uberlândia e a Uberaba atrás de alfaiates pra trabalhar em Anápolis. Trouxe uma equipe boa.; Os tempos conspiraram a favor. Geraldo Alfaiate, como foi batizada a loja na Rua Manoel Abadia, virou referência em toda a região. Ninguém fazia camisa e paletó como ele. A fama do homem correu. Os clientes importantes chegaram. Do prefeito, passando pelos vereadores, deputados até o governador do estado. Todos usavam os ternos sob medida do alfaiate paraibano.

Nova vida
O alfaiate ficou importante. E famoso. Cheio de si, voltou à cidade natal. Fora visitar os pais. Chegou de terno bem-cortado e gel no cabelo. Parecia galã de cinema. Lá, encontrou a moça que, quando ele partiu no pau de arara, ainda menina era. Maria do Socorro, 10 anos mais jovem, tinha virado professora. Fora educada em colégio interno. O alfaiate logo se impressionou.
O juiz da cidade também estava de olho na moça. Azar dele. O alfaiate chegou primeiro. O namoro, insistente da parte dele, foi a distância. ;Ele me escreveu durante dois anos. Eu não respondi nenhuma. Era muito menina;, ela diz, hoje com 71 anos bem-vividos. Geraldo não se deu por vencido. Um dia voltou e a pediu em casamento. A professora partiu para Goiás com o alfaiate.

O tempo andou. Geraldo não se cansou de fazer ternos e camisas. Os negócios prosperaram. A vida melhorou. Os quatro filhos do alfaiate paraibano nasceram em Anápolis ; Marta, Maristela, Gilson e Gisele, pela ordem de chegada em terras goianas. Maria do Socorro virou mãe em tempo integral.

Em 1969, então com 41 anos, Geraldo decidiu que, mais uma vez, era hora de mudar. ;Meu sonho era morar em Brasília. O poder aquisitivo era mais alto e já tinha muito cliente que morava aqui.; O alfaiate juntou mulher e filhos e chegou à terra de JK. Instalou-se numa casa na 703 Sul. Na W3, perto dali, na 502, abriu sua loja.

Agora, mais chique, abreviou o nome do estabelecimento. Virou G. Marques Alfaiate Alta Costura. Te mete! ;Ah, meu filho, a clientela só aumentou;, conta. Apareceram deputados federais, senadores, governadores, empresários e mais um tanto de gente engravatada. O poder entrou pelo seu ateliê. E ele aprendeu a costurar, além de roupas, os segredos dos poderosos. A caderneta na qual anotava o nome dos bacanas só crescia. ;Foi uma época boa;, lembra, ajeitando o paletó impecável de primeiro-ministro.

Da W3 Sul, Geraldo se mudou mais uma vez. Foi para o Setor Comercial Sul, endereço dos bem-sucedidos nos anos 70. Lá, no Edifício Maristela, ficou por mais de três décadas. Até o ex-presidente Fernando Collor de Mello fez seus ternos com Geraldo. ;Eu ia lá (na Casa da Dinda) pra tirar as medidas dele. Me tratava muito bem. Depois que aconteceu aquilo (refere-se ao impeachment), nunca mais fiz.;

Incansável
Passados 40 anos, Geraldo continua trabalhando. De segunda a sexta, deixa sua casa, num condomínio no Lago Sul, dirige seu carro até o SCS e chega ao seu ateliê. Há dois anos, mudou-se para o Edifício JK. Ali, na Sala 102, 10; andar, com vista privilegiada para o Eixão, recebe os velhos e novos clientes. ;Até hoje, quem tira as medidas e corta o tecido sou eu. Depois, o contramestre continua o trabalho;, explica o alfaiate de 81 anos e 65 de profissão. Quanto custa fazer um terno tradicional com seis botões ou um italiano, com três? ;Entre R$ 2 e R$ 3 mil, depende do tecido;, diz ele. E recomenda: ;Um homem, pra ficar bem-vestido, precisa ter 10 bons ternos, feitos sob medida, com tecido de primeira. Eles duram cinco anos;. Te mete novamente!

O time que trabalha com ele é da pesada. Gente que está há anos com o homem que fez do ofício de transformar pano em roupa sua melhor arte. Um deles, o maranhense Carlos Gardel Brasileiro, 50 anos (sim, caro leitor, o nome do alfaiate é esse mesmo), é fã do velho mestre. ;Ele sabe tudo;, elogia, elegantemente. Geraldo devolve: ;Ele é bom. Eu assino em branco como profissional;.

O mineirinho Milton Stanciola, de 73 anos, outro companheiro do ateliê, especializou-se em paletós. ;Antigamente, só os ricos podiam estudar. Os que não tinham condição precisavam arrumar emprego como barbeiro, alfaiate ou pedreiro;, diz ele, que há 52 anos faz coletes e calças e teme pelo desaparecimento completo da profissão. ;O jovem não quer mais ser alfaiate. Cada dia tem menos gente. Os mais velhos estão morrendo e não aparecem outros.;

E quem ainda tem tempo de fazer paletó, tirar medidas e comparecer às necessárias duas provas da roupa, com tantas lojas que existem por aí e a vida corrida e atribulada? Pacientemente, o sábio alfaiate ensina: ;Só encontra roupa fácil nas lojas quem tem o corpo bom e não precisa de reparos;. E conta o verdadeiro segredo de quem ainda prefere o alfaiate, esse ser cada vez mais em extinção: ;É gente que não quer sair uniformizada, já que elas (as lojas) fazem tudo igual, em série. Não tem novidade;.

Maria do Socorro, a companheira de 50 anos, vai toda tarde ao ateliê. Reclama, mas acabou fazendo da vida dele a vida dela. ;Detesto costura;, diz. Depois, prossegue: ;Dá até raiva a paixão do Geraldo por isso;. O alfaiate ri. Ela termina rindo também. ;Ele fala que só vai parar quando morrer;, insiste ela. Ele concorda: ;É verdade. Vou trabalhar até o fim da minha vida. Nasci pra ser isso;. Ela, olhando com orgulho pra ele, não diz mais nada. Na verdade, ela nunca detestou costura. Sente ciúmes.

Em meio aos tecidos que compra mensalmente em São Paulo, às famosas máquinas de costura alemãs que o acompanham faz mais de meio século e às tesouras igualmente experientes, mas nem por isso menos afiadas, Geraldo construiu sua longa história. Ponto em ponto, corte em corte, um conserto aqui, outro acolá, uma prova, outra prova, um alinhavo mais adiante, a vida foi se transformando como pano bruto que vira roupa.

Pergunto para o velho alfaiate, o mais antigo em atividade hoje em Brasília, se valeu a pena a caminhada. Ele, com pose de primeiro-ministro, responde, olhando seus tecidos importados que virarão ternos, paletós, camisas e blazers: ;Acho que deu certo. Meus filhos todos estudaram. Fizeram faculdade e têm até chefe de repartição. Consegui dar uma vida boa pra minha família;. Deu certo mesmo.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação