Jornal Correio Braziliense

Cidades

Levantamento aponta que 3 mil goianas se prostituiram fora do país a partir de 2004

Só em 2009, 15 morreram, a maioria envolvida com organizações especializadas em tráfico de pessoas

A comunidade goiana no exterior nunca esteve tão perto das máfias internacionais de tráfico de pessoas. Levantamento realizado pela Assessoria Especial para Assuntos Internacionais do governo de Goiás revelou que cerca de 300 mil pessoas nascidas no estado vizinho ao Distrito Federal vivem hoje fora do Brasil. Aproximadamente 70% desse total de emigrantes ; 210 mil ; estão ilegais e expostos aos esquemas de exploração sexual. O Aeroporto Internacional Juscelino Kubitscheck, em Brasília, tomou o lugar de São Paulo e aparece como uma das principais portas de saída de tal grupo.

O estudo realizado pela entidade revelou ainda que cerca de 3 mil goianas vivem ou viveram da venda do corpo a partir de 2004. ;Não é um número alarmante se comparado com o total de goianos lá fora, mas obviamente é preocupante. A experiência delas, apesar de muitas histórias de fracassos, ainda gera a ida de outras;, afirmou o chefe da assessoria especial, Elie Chidiac. São mulheres que deixam para trás a família e os amigos em busca de dinheiro e sucesso. A maioria é mãe solteira, tem entre 18 e 26 anos e escolaridade baixa. Ao alcançar a Europa e o Leste Europeu, desembarcam endividadas com os patrões.

Os dados apontados pela Assessoria Especial para Assuntos Internacionais também revelam o risco de se aventurar em lugares desconhecidos e sem assistência das autoridades. Houve 15 mortes de goianos em 2009, a maioria por conta de organizações criminosas especializadas em tráfico de seres humanos. Parte dos assassinatos ocorreu na Espanha e nos Estados Unidos, em consequência da rotina de escravidão imposta a quem arrisca a vida na prostituição. A média anual alcança 20 brasileiras mortas no exterior por causa das máfias.

Entre os homicídios praticados neste ano pelas organizações criminosas especializadas em exploração sexual, um deles se destacou por ter ocorrido na capital do país. O crime ocorreu em 6 de março em um bar no Setor Habitacional Lucio Costa, no Guará. A ex-prostituta goiana Letícia Peres Mourão, 31 anos, foi morta ao denunciar à Justiça espanhola o grupo responsável por escravizá-la sexualmente. Ela passou oito anos entre as cidades de Tarragona, Vilanova Y La Geltrú e Barcelona. Viveu o horror de trabalhar nos prostíbulos chefiados por Miguel Arufe Martinez, o Antonio.

O depoimento da vítima à polícia federal espanhola, em Tarragona, a 100km de Barcelona, chamou a atenção pelos detalhes. As declarações, prestadas em 15 de novembro de 2005 e confirmadas à Justiça em 7 de abril de 2006, revelam relações sexuais de quase 20 horas diárias, com direito a quatro ou cinco horas de descanso. Letícia contou que havia multas por atraso, cochilo ou rejeição de parceiro sexual. Cobrava-se até 40 euros (cerca de R$ 100) por relação de 30 minutos. E metade do dinheiro ficava com ela. A goiana aceitou passar 21 dias no cabaré da Calle Gasometro, em Tarragona, mas suportou 10.

A investigação do assassinato de Letícia ficou por conta da 4; Delegacia de Polícia, no Guará. Após quatro meses de apuração, os investigadores descobriram que o crime ocorreu a mando da organização de Antonio. Os policiais fizeram levantamentos minuciosos até localizar o principal suspeito do crime em uma favela de Guarapari (ES). Lúcio Flávio Barbosa, 20 anos, confessou ter atirado na goiana depois de contratado por Clênio Otacílio da Silva, que havia trabalhado como garoto de programa para o grupo. Recebeu R$ 4 mil. Está preso e será julgado pelo Tribunal do Júri de Brasília. Clênio continua foragido.

Força-tarefa
As ações goianas de prevenção e combate à prostituição internacional no Centro-Oeste brasileiro ganharam, a partir de 10 de dezembro, um aliado. O Ministério das Relações Exteriores lançou, em Goiânia (GO), o projeto Itamaraty Itinerante, de assistência aos brasileiros no exterior. É a primeira vez que a iniciativa ocorre longe das fronteiras do país. ;Esse projeto vai consolidar o canal de comunicação entre a Presidência da República e o governo do Estado;, resumiu ao Correio o subsecretário-geral das Comunidades Brasileiras no Exterior, embaixador Oto Agripino Maia.

Segundo ele, um dos pontos a ganhar atenção do Itamaraty será a quantidade de goianas atraídas pelas máfias europeias especializadas em tráfico de pessoas. ;Apesar de esses casos seguirem por conta do Ministério da Justiça, vamos ajudar a quem nos procurar. É um problema sério e deve ser combatido;, avaliou Maia. O Itamaraty Itinerante é realizado em parceria com a Assessoria Especial para Assuntos Internacionais e o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de Goiás, do Ministério Público de Goiás.

Para Elie Chidiac, 2010 deve ficar marcado pela volta de 20 mil goianos ao Brasil. A desvalorização do real e a crise financeira mundial são apontados como os principais motivos para o retorno ao país de origem. O movimento, no entanto, pôde ser identificado já no ano passado. ;Sobre 2009, certamente houve uma redução muito grande por causa da crise financeira mundial. Isso foi percebido na nossa Assessoria (Especial para Assuntos Internacionais) por meio da diminuição de registro de ocorrências, que caíram na ordem de 50%;, explicou.

Combativo
O órgão goiano, criado em 2000 por Elie Chidiac, presta assistência aos familiares e às vítimas de prostituição no exterior. O combate passa por três pilares: repressão, assistência e conscientização. Trabalha em parceria com a Polícia Federal e o Ministério Público de Goiás.

Memória

Série de reportagens

O Correio publica série sobre a prostituição internacional no Brasil desde março de 2009, quando Brasília passou a fazer parte das rotas internacionais de tráfico de seres humanos. As primeiras reportagens revelaram que, assim como São Paulo e Rio de Janeiro, a capital do país virou porta de saída de garotas convencidas a vender o corpo no exterior. A partir do Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, mulheres, a maioria goianas, seguem rumo à Europa. Portugal, Espanha, Bélgica e Suíça aparecem como os principais destinos.

Equipes do jornal viajaram a Goiânia (GO) para conversar tanto com vítimas de exploração sexual quanto com autoridades envolvidas no combate ao crime. Descobriram que a maioria das futuras garotas de programa embarcam depois de ter contato no Brasil com aliciadores contratados pelas organizações criminosas. Ao chegarem, porém, deparam-se com condições próximas à escravidão. Têm o passaporte confiscado pelos donos de prostíbulos. Muitas acabam obrigadas a atender de 10 a 12 clientes por noite.

A primeira sequência de reportagens, publicada entre 22 e 24 de março, detalhou o perfil dessas mulheres. A maioria tem menos de 30 anos. Algumas são exploradas inclusive pela máfia russa. No fim de junho de 2009, o Correio também revelou a participação de Anápolis (GO) no tráfico de seres humanos a partir do Brasil. Em julho, o jornal mostrou que, em média, 20 brasileiras são assassinadas no exterior em consequência da exploração sexual. Na época, nove haviam sido mortas na Espanha, nos Estados Unidos e no Brasil.