postado em 06/02/2010 08:10
Ele chegou antes de Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Nunca abandonou a cidade que ajudou a construir. Mas ontem se despediu definitivamente do plano físico ao ter o corpo cremado em Valparaíso (GO). A certeza de que Ernesto Silva, médico pediatra, coronel do Exército e desbravador do cerrado, viveu plenamente seus 95 anos confortou parentes e amigos que se despedem dele desde a última quarta-feira. Poucos, no entanto, conseguiram segurar as lágrimas quando atenderam a um pedido do pioneiro: em coro, as pessoas mais próximas de Ernesto cantaram o samba Último desejo, de Noel Rosa, de mãos dadas em cima do caixão. Quase 700 pessoas foram ao salão principal do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal (IHGDF), na 703/903 Sul, nos últimos dois dias. A cerimônia de cremação, no entanto, foi acompanhada apenas por parentes. A família deve jogar as cinzas do Pioneiro do Antes em locais históricos do Distrito Federal. ;Ele nunca vai deixar Brasília;, garantiu a viúva, Sônia Maria Souto Silva, que se manteve firme e até sorridente na maior parte do tempo.Sônia disse ao Correio que ficou emocionada com a presença das inúmeras autoridades e personalidades que foram dar o último adeus ao doutor Ernesto. Mas que o que a tocou mesmo foi a presença dos cidadãos anônimos da capital. ;Veio tanta gente simples. Amigos e admiradores do Ernesto. Gente como a faxineira do nosso bloco, o porteiro; Esse apoio encheu meu coração, que estava tão triste, de uma alegria sincera;, disse ela. ;E tenho certeza de que ele também ficou feliz também. Era disso que ele mais gostava, de estar entre amigos;, completou.
Amigos, como a pioneira Fátima Lopes, 68 anos, que passou a manhã circulando pelo salão, incrédula. ;Não consigo acreditar que ele se foi;, disse ela, que chegou ao canteiro de obras que se tornaria a capital de todos os brasileiros ainda adolescente, em 1958. ;Meu tio era engenheiro e fez parte das primeiras equipes. Lembro das visitas do presidente Juscelino a nossa casa;, relata, olhando para o caixão. ;O doutor Ernesto me chamava de ;menina; na época e nunca abandonou isso. Encontrei com ele há seis meses e ele gritou ;ô menina, vem aqui me dar um abraço;;, completa ela, que ajudou a povoar o DF com seus sete filhos.
O velório terminou pouco depois das 13h, com honras militares. Dezenas de integrantes do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP) prestaram continência ao general enquanto o caixão era carregado para a limosine do cemitério Campo da Esperança. Ernesto Silva, porém, abdicou do lugar de honra a que teria direito na Ala dos Pioneiros, no fim da Asa Sul. Ele pediu à família para ser cremado e teve seu desejo atendido.
Amigo de Ernesto desde 1960, o vice-presidente institucional do Correio, Ari Cunha, esteve no velório. Para ele, Brasília perdeu parte importante de sua história. ;Eu conhecia o Ernesto de fama desde a Missão Cruls. Sempre o achei admirável e foi uma satisfação poder conviver com uma pessoa como Ernesto. Brasília nasceu de um ideal e nossa geração teve o privilégio de ajudá-la a se formar;, disse ele. O carnavalesco Joãosinho Trinta também prestou suas homenagens. Apesar de não ter conhecido Ernesto Silva pessoalmente, o artista sente ter algo forte em comum com ele. ;Eu conversei com JK há muitos anos e ouvi de sua boca os ideais que ele tinha. Suas razões me fizeram amar Brasília e, naquele tempo, eu decidi que ainda moraria aqui. Era uma coisa arquitetada que, graças a Deus, estou realizando agora. Amei a cidade antes de sua construção, assim como o grande Ernesto Silva;, afirmou.
PRÁTICA ANTIGA
A escolha de Ernesto Silva de ter o corpo cremado, à primeira vista, pode parecer heterodoxa, mas a prática está presente na história humana há, pelo menos, 3 mil anos. Os gregos, mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo, queimavam os mortos e consideravam esse um fim nobre. Lá, os sepultamentos eram reservados a criminosos e suicidas. A Roma antiga também adotava a tradição. Religiões orientais, como o budismo, incentivam a prática. No Japão, que não conta com muita terra, a cremação é quase uma necessidade. A cremação diminui em muito os perigos ambientais provenientes do sepultamento. O corpo dentro do caixão é colocado em fornos com temperatura superior a mil graus centígrados. De um corpo de 70 quilos, não sobra mais do que um quilo de cinzas. Os judeus não aceitam a prática. Para eles, a alma se separa do corpo lentamente. Os espíritas acreditam que o espírito não sai do corpo imediatamente, mas permitem a cremação após 72 horas da morte.