Jornal Correio Braziliense

Cidades

As incríveis histórias do lavrador que largou a roça para cavar buraco na obra de Brasília

Quando chegou o envelope com o primeiro pagamento na Construtora Rabelo, C$ 5.226, o coração de Clementino Cândido bateu forte como um tambor: ;Nunca tinha visto tanto dinheiro, Nossa Senhora!”. O peão sabia que era uma dinheirama, mas quanto? Clementino não sabia contar. Pediu então a um colega que conferisse a quantia recebida. ;Ele contando e eu encostado nele com medo de ele pegar meu dinheiro. Se ele tentasse, eu pegava ele até no dente;, conta o candango, com uma gargalhada.

Quem diria que o lavrador, filho de carreiro, que não sabia escrever nem contar, receberia, de uma só vez, muito mais do que havia recebido durante toda a vida? Clementino estava com 27 anos e trabalhava na roça com o pai desde os 6. Depois de conferir que, a cada colheita, a família ficava devendo ao dono da terra, decidiu vender uma plantação, pegou o dinheiro, despediu-se dos pais e do único irmão e partiu com a intenção de procurar emprego no Rio de Janeiro. Parou em Belo Horizonte e ouviu, de um alto-falante vindo de uma Rural Willys, a oferta de trabalho para peão de obra em Brasília.

Muitos envelopes cheios de dinheiro depois, Clementino Cândido é um bravo candango aposentado que de vez em quando acorda de madrugada, olha para o telhado de amianto, as paredes da casa sem pintura e pensa: ;Eu já fui gente;. Depois de tirar cascalho do Rio Corumbá, de cavar o chão que sustenta o Palácio da Alvorada, de abrir o Buraco do Tatu, Clementino foi trabalhar no escritório da Rabelo e ao mesmo tempo na casa do dono da construtora, Marco Paulo Rabelo. Conviveu com o ;doutor Juscelino;, com empresários, políticos, coronéis e ;madames; a quem servia café, para quem lavava as louças e arrumava as camas. ;Gente grande não arruma cama, não, senhora;.

Saiu de debaixo de terra e foi para a casa do mais poderoso empreiteiro da construção de Brasília por conta de seu jeito de tratar as pessoas. ;Meu pai me ensinou a ser honesto e humilde, a respeitar os outros, tratar bem e trabalhar.; Quando estava tirando cascalho do rio, Clementino sabia que no domingo eles só tinham direito ao almoço. À noite, cada um que se virasse. Então, começou a adular a mulher da cozinha ; ;puxa-saco mesmo;, diz ;para ela se condoer da fome do candango e separar um prato para ele. ;Toda vida fui muito adulador das pessoas;. Desse modo, foi conseguindo a simpatia dos patrões até se aposentar a serviço da construtora Rabelo. Mas o serviço de dentro de casa e do escritório não era fácil. ;Eu servia almoço às três da tarde e janta às três da manhã. Dormir, não dormia. Se dormisse, era meia horinha. Mas se eu adoecesse, o patrão não me mandava para o hospital do governo. Eu ia pra clínica particular.;.

Burocracia
No dia em que chegou a Brasília, 5 de janeiro de 1957, Clementino sentia os sintomas da gripe asiática ; ;era como uma pneumonia, só não punha sangue;. Quando mergulhou nas águas geladas do Corumbá para tirar cascalho, inexplicavelmente os incômodos desapareceram. Dois meses depois, numa viagem de caminhão a Brasília, para ajudar o patrão a descarregar o cascalho, Clementino soube pela primeira vez que precisava de ter Carteira de Trabalho e que tinha de pagar INSS (à época, INPS) para ter direito à aposentadoria. Carteira de trabalho, empresa, firma, INPS, aposentadoria ; palavras e conceitos que o mineiro da roça desconhecia. ;E tem tudo isso?;, ele perguntou, espantado, ao patrão. ;Eu só tinha registro de nascimento e nem sabia que era um documento;. Na fazenda, não era permitido nem servir ao Exército nem ir para a escola. ;O dono da terra dizia que quem fazia isso era vagabundo.;

O ex-lavrador ficou tentado a trabalhar numa ;firma;. Conseguiu uma vaga na maior das construtoras da nova capital, a Rabelo. Trabalhou no pesado durante dois anos ; ;Era das sete da manhã às sete da noite. Depois, entrava a outra turma, das sete da noite às sete da manhã, e tinha de fazer serão três vezes por semana. E quem não aguentasse, era pra pedir conta e ir embora. Desse jeito é que foi construída Brasília.; Clementino viu mortes na construção da Rodoviária e no Teatro Nacional. Sofreu um acidente de trabalho, quando um fragmento de cascalho caiu perto de seu olho esquerdo, deixou uma cicatriz e comprometeu levemente a visão.

Setenta e nove anos, casado pela quinta vez, pai de oito filhos, a mais nova com 6 anos, Clementino deixou de ser peão de obra para ser chacareiro e contador de histórias. Emenda uma na outra e na outra e nesse longo contar o bravo candango vai revelando uma Brasília que poucos conhecem. Ele lembra do dia em que um bando de operários correu atrás de um veado galheiro, de aproximados 150kg. O bicho cruzava o cerrado perto das obras da Rodoviária quando foi imobilizado, amarrado e deixado ao sol, enquanto os peões foram almoçar. Quando voltaram, o bicho estava morto.

Relata também que, antes da ;revolução da Pacheco; (o episódio acontecido no carnaval de 1959), ;revolução; semelhante aconteceu, cerca de dois meses antes, no refeitório da Rabelo. ;A comida era uma fartura, arroz, feijão, carne, tudo quanto é verdura. Mas a gente encontrava de tudo nela, mosquito, barata, até esparadrapo.; Num domingo, os candangos se rebelaram contra a sujeira, começou um quebra-quebra, a polícia do Quartel do Exército chegou e pôs fim ao protesto. ;Na confusão, o encarregado disse que quem quisesse trabalhar era pra subir no caminhão. Eu subi e levei uma sarrafada nas costas. Me chamaram de puxa-saco.;. Na Rabelo, não houve mortos nem feridos. ;Aí a Pacheco Fernandes incrementou com aquilo;; Clementino disse que nesse dia ocorreram muitas mortes, mas ele mesmo não viu nenhum corpo. Só ouviu falar.

Chegou o dia da inauguração. ;Quando vi Brasília pronta, fiquei bobo. Como é que eu aguentei? Muitos não aguentaram. Trabalhar do jeito que a gente trabalhou não é pra qualquer um, não.; Mas diz que, se tivesse ficado na lavoura, ;tinha morrido à míngua;. Brasília lhe deu a chance de tirar os pais e o irmão da roça. Deu-lhe uma chácara, duas casas, uma na Vila Planalto e outra no Recanto das Emas, e histórias de embalar os ouvidos. Meio século depois, o bravo candango se espanta: ;Não pensava de alcançar Brasília deste tamanho.; Quando a entrevista acaba, o entrevistado convida os repórteres para uma cervejinha. Como era horário do trabalho, o convite foi gentilmente recusado. Diz então que vai ficar esperando as visitas para almoçar na casa dele, que vai ficar esperando. Sabe tratar bem as pessoas esse Clementino.