Cidades

O primeiro médico da nova capital

Edson Porto assistiu os primeiros doentes da nova capital num pequeno posto. Mais de meio século depois, montou, em casa, uma exposição histórica

postado em 10/02/2010 09:48
Não era apenas o corpo que doía de cansaço pelo exasperado ritmo de trabalho. A alma condoía-se de solidão e os doentes de saudade da família procuravam o hospital do Iapi (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários) à procura de um remédio inexistente. Mas havia outras moléstias, de mais fácil cura: as diarreias, as doenças sexualmente transmissíveis (que à época se denominavam venéreas), as fraturas em acidentes de trabalho. E o surto de gripe asiática que obrigou o médico Edson Porto a providenciar 80 colchões para distribuir pelo chão do hospital de campanha, de madeira, construído em 1957 para atender os bravos candangos.

A turma dos que vieram acreditando no sonho de JK e ajudaram a tornar possível BrasíliaCaçula de 14 irmãos, Edson Porto veio para Brasília e, logo depois, trouxe a mãe, Elídia. O mineiro de Araguari, formado na Faculdade Nacional de Medicina, havia escolhido a pediatria e começado a vida profissional em Goiânia. Seis meses depois, surgiu a oportunidade de vir para Brasília. Não era seu projeto. Porto veio para a nova capital porque fizera um acordo com o chefe, o médico Luis Rassi: ele aceitaria a tarefa emergencial de ser o médico de um gigantesco canteiro de obras e, em contrapartida, na volta a Goiânia, seria integrado ao corpo de pediatras do novo hospital que estava sendo construído.

Acordo feito, Edson Porto chegou a Brasília em 4 de dezembro de 1956 para nunca mais sair. Poderia até ter voltado para assumir o cargo prometido, mas a nova capital ofereceu-lhe um posto mais importante: o de diretor do primeiro hospital da cidade, o do Iapi, mais tarde denominado Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira, o HJKO, onde hoje funciona o Museu Vivo da Memória Candanga. Até hoje, Porto chama o lugar de ;hospital de campanha;, pelo caráter de emergência que nele havia. Nos primeiros dias de funcionamento da instituição, o médico percebeu que era necessário contratar mais ortopedistas. Em vez de um, três, tantos eram os acidentes de trabalho.

Logo que chegou, Edson Porto se instalou num posto de atendimento médico que era ao mesmo tempo seu lugar de moradia. A sala de atendimento, o depósito de medicamentos e o quarto eram separados por biombos. Do lado de fora, precárias instalações sanitárias. Na bagagem, o primeiro médico trouxe medicamentos para diarreia, antitérmicos, antibióticos, instrumentos e materiais para pequenas suturas e soro antiofídico. Não foi preciso muito tempo para Porto perceber que o soro seria imprescindível. Eram muitos os casos de picada de cobra, encaminhados a Goiânia depois da aplicação da primeira dose de soro. O primeiro posto médico da nova capital era incipiente, mas havia um avião Cessna à disposição para que ocorrências mais graves fossem levadas à capital de Goiás.

Ele chegou em 1957 a Brasília, cidade que o conquistou a ponto de fazê-lo desistir do projeto de ir para GoiâniaGrande amor
Esses primeiros anos de desbravamento e aventura foram amorosamente documentados por uma goiana que abandonou o curso de normalista e os sonhos de cursar medicina para acompanhar o homem por quem se apaixonou arrebatadoramente. Tudo aconteceu assim: quando conseguia uma folga em Brasília, o jovem médico descansava em Goiânia. Numa dessas noites de fim de agosto de 1957, num baile no Jockey Club, ele viu Marilda e convidou-a para dançar. Depois da música, o rapaz forte, de rosto comprido, queixo anguloso e bigode sentou-se à mesa e começou a conversar com a tia da moça. Foi um truque para ficar por ali e não perder a goiana de vista. Naquela noite, ficou conhecendo um pouco mais sobre a garota, soube que ela viria a Brasília numa caravana da escola e antes disso enviou a ela uma carta sedutora.

;Quando li aquilo, eu, uma menina que só havia namorado garotos da minha idade, não resisti;, conta Marilda, 69 anos e uma alegria e um vigor de quem não perdeu o gosto pela vida. Nove meses depois, estavam casados e morando numa das casas ao lado do hospital do Iapi. Um mês adiante e a jovem goiana estava grávida do primeiro dos cinco filhos. Com o caçula casado, a mãe de Edson voltou para Goiânia. ;Mas deixou muitos amigos por aqui;, conta Marilda. ;Ela jogava baralho todas as noites com os médicos e funcionários do hospital. Fazia biscoito de queijo e café quentinho, deixava sobre a mesa, com a porta aberta e ia dormir. Quem quisesse se servia.;

Exposição
Desde 1958, quando veio para Brasília, Marilda passou a guardar fotografias, revistas e manuscritos sobre a história da cidade. Com Marilda, que exibe, orgulhosa, a foto do casal: 50 anos de amor e muita dedicaçãoMenos por entender, ainda tão jovem, o que acontecia naqueles históricos anos; e mais, reconhece, por amor ao marido. Quando a velhice chegou, a mulher do primeiro médico decidiu juntar as fotos num álbum de família até que um de seus 12 netos, Marco Túlio, se interessou pela história que estava registrada nas imagens em papel. Sempre que ia à casa dos avós, passava um bom tempo admirando as fotos de um tempo muito antigo para ele. Um dia, o garoto perguntou a Marilda: ;Vó, quando você morrer, você deixa esse álbum pra mim?;.

Foi um susto e o mote de que ela precisava para as decisões que tomou em seguida. Na festa dos 50 anos de casamento, Marilda montou cinco grandes álbuns, um para cada filho (Valéria, Saulo, Fábio, Simone e Mauro) e organizou, numa das salas da casa no Park Way, uma exposição permanente de fotos e de páginas de revistas do tempo da construção. ;Em vez de fazer medicina, me casei com um médico, foi o atalho mais fácil;, ela diz, rindo e se lembrando de suas tantas pequenas vitórias ao longo da vida. Filho de árabe, o marido não entusiasmou a mulher a se envereda pelo caminho da autonomia feminina. Sem que ele soubesse, ela tirou carteira de motorista, voltou a estudar, terminou o 2; grau e, ao mesmo tempo, cultivou paciente e diligentemente a memória dos feitos do médico. Aos 78 anos, Edson Porto diz que Brasília fez toda a diferença em sua vida. Não fosse ele ter vindo para cá, teria sido apenas mais um médico em Goiânia. Aqui, ficará na história como o primeiro médico da nova capital do Brasil.

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