Cidades

Livros retirados do lixo mudaram a vida de Everaldo

Tudo parecia conspirar para que a vida de Everaldo José da Silva Santos não desse certo. Da infância sofrida no interior da Bahia ao vício do jogo e a um relacionamento que se desfez deixando fortes marcas, nada vislumbrava esperança. Mas ele mudou o rumo de sua história

postado em 11/02/2010 09:50
Everaldo deu a volta por cima com a nova atividade: %u201CEstiquei um pouco mais a minha lona de camelô e comecei a vender os livros%u201DNo interior de uma Kombi, em Taguatinga Centro, vive a história de um ex-morador de rua, ex-viciado em jogo, que encontrou felicidade e equilíbrio em livros retirados do lixo. O baiano Everaldo José Silva dos Santos, hoje com 32 anos, montou dentro do veículo um sebo ambulante com 2 mil exemplares reaproveitados. O negócio de troca e venda de publicações funciona dentro do carro há três anos. Ali, o dono alimenta diariamente sua paixão pelos livros e mata a sede de comprá-los pagando barato de muitos brasilienses.

Todos os dias, por volta de 300 pessoas passam pela banquinha improvisada por Everaldo. Ele atende todo tipo de gente: de estudantes e professores a mendigos e bêbados que gostam de ler. Os livros ficam expostos para quem quiser folhear sem compromisso. Uma placa avisa: ;Leia. Fique à vontade;. E assim ocorre. ;Sinto prazer em ver as pessoas lendo;, explicou Everaldo. Se o plano for levá-los para casa, o mais barato custa R$ 1 e o mais caro não passa dos R$ 40. Há de Gabriel García Márquez à literatura erótica dos livretos da série Sabrina e Bárbara, passando pelos livros didáticos, em edições atualizadas, até 90% mais baratos que nas livrarias convencionais, e, ainda, apostilas de concurso público.

Quando vivia na rua ; Everaldo passou por São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador ;, o rapaz era catador de papel. Muitas vezes, em meio a embalagens dos mais variados produtos, encontrava algum livro descartado pelo dono como se não tivesse mais serventia. Além de um passatempo, as histórias impressas em pedaços encardidos de papel o faziam viajar e conhecer um mundo até então distante. ;Sempre gostei dos de filosofia. Achava tudo muito incrível e possível ao mesmo tempo;, lembrou. No começo, Everaldo não vendia os livros, apenas se divertia com eles.

Nos tempos de criança, em Ibicaraí, no sul da Bahia, Everaldo lia e estudava escondido do pai, um trabalhador rural que não acreditava no valor do conhecimento e depositava toda sua fé em resultados de um esforço mais prático: o trabalho braçal na lavoura. ;Às vezes faltava de tudo em casa. Tenho sete irmãos e minha mãe morreu no parto. Mesmo com toda essa desventura, o que me alimentava eram os livros. Eles me faziam seguir em frente;, acredita. Já adolescente, Everaldo não tinha nem o primeiro grau completo. Quando chegou aos 19 anos, mudou-se para São Paulo, em busca de emprego e instrução formal. ;Os livros podiam me levar muito longe e não só na imaginação. Eu sabia disso e precisava tentar.;

O jovem conseguiu emprego em um clube e também como ajudante de servente. Mas no caminho o moço do interior encontrou diversão fácil em jogos de cassinos na cidade grande e perdeu-se entre fichas e o dinheiro que ia e vinha com a mesma facilidade. ;Eu gastava em uma hora o salário de um mês;, lembrou. O vício roubou o lugar dos sonhos, que logo viraram projeções distantes. Everaldo perdeu os dois empregos que arranjara e acabou virando morador de rua. Só sobraram os livros que ele empacotou e levava sempre ao seu lado como companhia.

Cidade boa
Os colegas dessa época falaram para Everaldo sobre uma cidade de solo plano, muito melhor para catar papel que qualquer outra já vista: Brasília. Ele acreditou na vocação da capital federal para prosperar nesse ramo. ;Me disseram: ;Vai lá porque não tem esses morros e ladeiras igual aqui. É bom demais;. E eu vim para o DF;, relembrou o comerciante. Chegando ao solo candango, Everaldo já havia se curado sozinho do vício em jogos. ;Quando meu dinheiro ia toda embora, batia uma frustração muito grande. Esse sentimento me fez acordar.; Ele conseguiu montar um ferro velho no qual também residia. ;Corria tudo muito bem, até eu me apaixonar loucamente por uma mulher. Ela me deixou e eu fiquei sem chão. Vendi tudo que tinha no ferro velho e decidi me mudar de Brasília. Mas pensei: se eu for embora, o que sinto vai comigo. E resolvi ficar aqui mesmo. Passei então a ser camelô no centro de Taguatinga. Vendi roupas e chapéus durante um tempo.;

Mas o negócio não ia muito bem. Certo dia, deitado na cama, Everaldo admirava sua coleção de quase 200 livros quando teve a ideia de passá-los para frente. ;Já tinha lido todos eles e sabia que poderia conseguir mais no mesmo lugar: o lixo. Então estiquei um pouco mais a minha lona de camelô e comecei a vender os livros também. A coisa começou a fazer sucesso. Todo mundo parava para ler um pouco, porque era barato demais, tipo R$ 1;, contou.

Reviravolta
Quando o governador José Roberto Arruda assumiu o comando do DF, retirou todos os camelôs das ruas de Taguatinga. Everaldo se viu mais uma vez sem saída. ;Foi então que pensei na Kombi. É algo móvel e eu poderia vender meus livros sossegado. Juntei todas as minhas economias e paguei R$ 2,5 mil nela;, relatou. Desde então, o negócio não para de crescer. Everaldo trabalha das 6h30 às 20h, de segunda-feira a sábado. Na coleção tem de tudo: Machado de Assis, Vinícius de Moraes, José de Alencar, Arnaldo Jabor, Nietzsche, Kant; ;As pessoas se encantam com a ideia e me dão livros sempre. Hoje eu alimento o acervo com doações e trocas. Não precisei mais pegar do lixo;, disse.

A história do menino que virou homem e não esqueceu o poder de fazer viajar da literatura está gravada dentro da Kombi branca envelhecida pela passagem do tempo e fabricada em 1978. Everaldo hoje vive em uma casa confortável em Samambaia e tem até uma funcionária, Jaqueline Mendes, 17 anos. ;Escutava as histórias dele e ficava muito comovida. Então resolvi ajudar. Fico na Kombi quando ele não pode;, relatou Jaqueline.

O patrão pensa em montar um sebo em uma loja convencional. Mas sem desistir da inusitada livraria móvel. ;Ela vai ser o chamariz para a entrada;, planeja. ;De tudo isso, tirei uma lição: o que para muitos é lixo, para outros é esperança, conhecimento. Acreditando nisso, eu vivi toda a minha vida e trouxe até meus irmãos para a cidade grande;, comemorou. O maior orgulho de Everaldo, no entanto, é ver gente simples lendo. ;Quando as pessoas passam aqui na frente, elas se lembram de ler. Até os mendigos bêbados juntam as moedinhas e levam um livro. Esse é o meu maior orgulho;, concluiu.

"Às vezes faltava de tudo em casa. Tenho sete irmãos e minha mãe morreu no parto. Mesmo com toda essa desventura, o que me alimentava eram os livros. Eles me faziam seguir em frente"
Everaldo José Silva, comerciante

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação