Helena Mader
postado em 20/02/2010 08:00
Criada em 2006 para coibir a violência doméstica, a Lei Maria da Penha virou motivo de divergências no Judiciário brasileiro. A legislação prevê o andamento da ação penal contra o agressor, independentemente da vontade da vítima. Mas, nos julgamentos de casos de agressões a mulheres, o entendimento dos juízes está longe da unanimidade. Em alguns tribunais do país, os magistrados se recusam a encerrar o processo a pedido da mulher agredida ; como estipula a Lei Maria da Penha. Em outras comarcas, entretanto, os juízes engavetam a ação quando a vítima e o agressor se reconciliam. Uma ocorrência de violência doméstica registrada no Distrito Federal em 2007 pode acabar com essas divergências. O processo será analisado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) na próxima quarta-feira e o resultado do julgamento deve servir como jurisprudência para o Judiciário de todo o país.
O caso que vai mobilizar os ministros do STJ ocorreu em Santa Maria, em setembro de 2007. Uma moradora da cidade, agredida pelo marido, teve o braço quebrado e ficou com diversos ferimentos na cabeça após a sessão de violência. O companheiro chegou a ser condenado pela Justiça, mas a vítima fez as pazes com o marido e decidiu retirar a queixa para acabar com a ação. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal acatou o pedido e encerrou o processo. Mas o Ministério Público do Distrito Federal recorreu ao Superior Tribunal de Justiça para que o caso prosseguisse.
Como havia uma enxurrada de questionamentos semelhantes no STJ, o ministro-relator Napoleão Nunes Maia Filho determinou ;a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida;. Telegramas foram enviados aos tribunais estaduais para alertar sobre a paralisação dos recursos. Agora, o caso será analisado por todos os ministros de turmas criminais do STJ e a decisão vai vincular a Justiça do país.
A divergência em torno da aplicação da Lei Maria da Penha é com relação às lesões corporais leves. Quando há lesões graves ou tentativas de homicídio, por exemplo, os magistrados são unânimes no entendimento de que a autorização da vítima não é necessária para que a ação prossiga. Mas, quando os ferimentos não deixam a pessoa incapacitada de suas atividades habituais por mais de 30 dias ; prazo que consta do Código Penal para a definição dos casos de lesão grave ;, muitos magistrados ainda levam em consideração a vontade da vítima.
Expectativa
A coordenadora do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do DF, Laís Cerqueira, conta que a expectativa com relação à decisão do STJ é grande. ;Desde que a Lei Maria da Penha entrou em vigor, existe essa controvérsia. Mas o texto dessa legislação é muito claro no sentido de que a ação tem que ser pública e incondicionada, ou seja, tem que prosseguir independentemente da vontade da vítima;, explica a promotora. ;O Ministério Público tem recorrido de todas as decisões de juízes que aceitam o arquivamento de casos. O agressor tem que ser responsabilizado criminalmente até por uma questão preventiva, para que a sociedade compreenda que agredir a mulher é crime;, finaliza Laís Cerqueira.
A juíza Adriana Ramos de Mello, presidente do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, também espera que o Superior Tribunal de Justiça decida pela tese de que a ação deve continuar mesmo nos casos em que a vítima tenta acabar com o processo. Ela acredita que, caso o STJ entenda que a mulher agredida tem o direito de retirar a queixa, a Lei Maria da Penha ficaria sem sentido. ;De qualquer forma, é bom que o STJ decida isso porque a Justiça está muito dividida. Se a mulher é agredida em determinado bairro, o juiz pode entender que o processo é obrigatório. Se o caso acontecer em outra região, a decisão corre o risco de ser no sentido oposto. Isso causa uma insegurança jurídica;, pondera a juíza. ;O estado não pode deixar essa decisão na mão da mulher agredida. Ainda vivemos em uma sociedade muito desigual;, finaliza a magistrada.
A assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria Ana Cláudia Pereira acredita que a possibilidade de a vítima poder encerrar a ação a qualquer momento pode levar à banalização da violência doméstica. ;Essa agressão classificada como leve quase sempre é o prenúncio para lesões mais graves. Muitas vezes, a vítima tem dependência emocional e financeira. Exigir que ela manifeste a vontade de processar seu companheiro é muito complicado;, justifica Ana Cláudia.
A Lei n; 11.340/06, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, estabelece as medidas que os juízes podem estabelecer para defender as mulheres agredidas. Entre os mecanismos estão a suspensão de posse de arma, afastamento do agressor do lar, proibição de aproximação da vítima e restrição à visita aos dependentes menores.
Para saber mais
A história de Maria da Penha
A legislação para coibir a violência contra a mulher ganhou o nome da biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia depois que seu caso ficou conhecido nacionalmente. Em 1983, o marido de Maria da Penha, o professor universitário Marco Antonio Herredia, tentou matá-la duas vezes. Na primeira vez, deu um tiro e ela ficou paraplégica. Na segunda, tentou eletrocutá-la. Na ocasião, ela tinha 38 anos e três filhas, entre 2 e 6 anos de idade.
Ela iniciou, então, uma longa jornada em busca de Justiça. Sete anos depois, Herredia foi a júri, sendo condenado a 15 anos de prisão. A defesa apelou da sentença e, no ano seguinte, a condenação foi anulada. Um novo julgamento foi realizado em 1996 e uma condenação de 10 anos foi-lhe aplicada. Herredia foi preso em 28 de outubro de 2002. Porém, ficou encarcerado apenas por dois anos, em regime fechado. Hoje, está em liberdade.
O caso chegou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acatou, pela primeira vez, a denúncia de um crime de violência doméstica. Assim, a repercussão do caso foi elevada a nível internacional. Uma proposta elaborada por um consórcio de ONGs e reformulada por um grupo de trabalho interministerial, coordenado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, do Governo Federal, foi encaminhada para o Congresso Nacional. O resultando foi a Lei n; 11.340, sancionada pelo Presidente da República em 7 de agosto de 2006 e batizada de Lei Maria da Penha.