Cidades

A reinvenção da vida

Um menino de 10 anos e uma mulher de 48, ambos portadores de sérias limitações físicas, encontraram juntos o melhor caminho para enfrentar suas doenças. Ela lhe dá aulas de pintura em pano de prato e ele, mesmo sem perceber, resgata nela a alegria de viver

postado em 21/02/2010 09:09

A amizade nasceu da imensa impossibilidade. E da vontade comovida de um querer ajudar o outro, mesmo que um deles nem tivesse consciência do tamanho da ajuda. Do tamanho da transformação que aquele encontro causaria para sempre na vida de ambos. Quando ela pensava que não poderia mais ensinar nada a alguém, ele apareceu no seu caminho. Quando ele andava meio sem graça, ela lhe deu um sorriso. Era uma festinha de aniversário. Eles chegaram em suas cadeiras de rodas.

Em aula, ele presta a maior atenção a tudo que Leda ensina. Ela tem 48 anos e cabelos cinza, quase brancos, naturalmente pela ação da vida. Ele completou 10. Ela, desde 2007, parou de andar. Ele, aos 4, andou de bicicleta e correu pela última vez. Ele é gaúcho. Ela, paranaense. Em Cristalina (GO), a 130km de Brasília, muito longe do Sul, os dois se encontraram. Comovida, com a voz trêmula e passando a mão sobre os cabelos amarelos de anjo que ele tem, ela admite: ;Foi amor à primeira vista;.

Ela ensina pintura pra ele. Ele, mesmo com pouca força nas mãos, aprendeu mais rapidamente do que ela imaginava. Eles pintam panos de pratos. Zuleida Zaboli Lima e Mateus Bizarro são personagens de uma história que poderia render um filme. Daqueles de sair do cinema com a sensação de que a humanidade ainda é boa. E de que o ser humano ainda vale a pena. Mesmo quando se acredita que nada ; nada mesmo ; tem mais jeito.

Desde 2007, o Correio acompanha a saga de Mateus pela vida. Internado havia meses na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Regional da Asa Sul (Hras), o garoto precisava de um respirador artificial portátil para sair dali e voltar pra casa. Sem o aparelho, teria de viver o resto da vida naquele lugar. A ajuda, depois da corrente de solidariedade que se formou em Brasília e no país, chegou. A Secretaria de Saúde do DF providenciou o aparelho. Mateus foi embora daquele lugar há dois anos. Médicos, enfermeiros e auxiliares choraram. Nunca mais voltou a ser internado.

Ele é portador de mitocondriopatia, uma síndrome metabólica rara e de difícil diagnóstico. A síndrome, uma deficiência na produção de um enzima, provoca, entre outras coisas, atrofia física e neurológica progressiva. Zuleida, a professora de pintura, parou numa cadeira de rodas em decorrência de uma hérnia de disco torácica. Aos poucos, ela perdeu a sensibilidade em uma perna. Depois, na outra. E logo deixou de andar. Ainda foi operada no Hospital de Base, para ver se recuperava algum movimento. Em vão. Zuleida ; ou Leda, como todos a chamam ; nunca mais andará. Casada, dona de casa exemplar, mãe de dois filhos adolescentes, ela teve que reaprender a viver usando suas pernas emprestadas.

Numa festa de aniversário em março do ano passado, aquele menino chegou trazido pelo pais. ;Eu vi ele de longe e pensei: ;É o menino sobre quem o meu fisioterapeuta (José Roberto Grossi), que é o mesmo dele, me contava as histórias de luta. Começamos a conversar. Passamos a festinha toda juntos. Quando ele foi embora, disse a mim mesma: ;Tenho que descobrir onde ele mora;. E descobri;. Cristalina não é tão grande assim. Logo vieram informações. O menino morava numa outra rua, pertinho dela.

Pouco a pouco, ele foi aprendendo a exercitar sua criatividade com o pincel. O encontro com a pintura representa, hoje, um importante aliado na convivência com a doençaEla, um dia, lhe fez uma visita. Contou-lhe que pintava panos de prato, vasos e telas desde mocinha. E que ensinava, lá no Sul, o que sabia para os outros. Ele ouviu o encantamento daquela mulher falando de como coisas lindas poderiam surgir de um pano aparentemente sem vida. Mateus sorriu. E lhe perguntou, com a voz miudinha abafada pela traqueostomia: ;Você me ensina a pintar também?;. Leda, como ela prefere ser chamada, disse que sim. Escondeu as lágrimas, para disfarçar a emoção, e partiu, com o filho mais novo empurrando a cadeira de rodas.

Cores da vida
Mateus dormiu inquieto, esperando o dia amanhecer, para a primeira aula. A mãe, a dona de casa Dirlei Miotti, 37 anos, e o pai, o representante comercial Adair Bizarro, compraram tintas, pincéis e panos de prato. Dirlei empurrou a cadeira do filho até a casa de Leda. Foi a primeira aula. Sem nenhuma coordenação, ele mal conseguiu pegar o pincel. Leda o colocou no colo e pegou na sua mão. E juntos rabiscaram, com cores que pintam vida, os moldes que decorariam os panos sem vida. Mateus adora azul. Ele se sujou todo. Quanto mais sujo, mais vida.

As aulas se sucederam. Mateus queria todos os dias. Leda o esperava cheia de felicidade. Dirlei vibrava com a animação do filho. Mateus progredia a cada aula. Começou a pintar sentado na própria cadeira e com as próprias mãos, mesmo com todas as limitações que possui. Lentamente, viu mangas, peras, uvas, morangos, tomates e abóboras brotarem de panos brutos e sem cor. Sorriu, como sempre lhe disseram que poderia.

Em setembro passado, as aulas tiveram que ser suspensas. Leda foi internada às pressas com problemas renais. Mateus passou a dormir mal. Entristeceu. E adoeceu. ;Ele teve febre de 39 graus, sem nenhum motivo que justificasse;, conta a mãe. E fuxica: ;Ele já acordava chamando pela Leda;. Na casa modesta onde mora, com piso de cerâmica queimada, Leda ouve Dirlei contar os segredos de Mateus. E se emociona mais uma vez: ;Eu invadi a privacidade dele;.

Leda voltou pra casa, depois de alguns dias. As aulas, nunca cobradas pela professora, recomeçaram. Mateus passou a pintar cada vez mais. E fez como conseguiu. Encomendas ; dos amigos da família dele e dos amigos de Leda ; apareceram. O pouco dinheirinho que apareceu foi para o cofre de Mateus. Ele se sentiu importante. Infinitamente capaz de produzir. ;Ele faz uma força danada pra aprender. Mesmo com as todas as dificuldades motoras, tem conseguido;, elogia a professora.

Ciumeira danadaDirlei, mãe de Mateus, conduz o filho e Leda pelas ruas de Cristalina, rumo à casa da professora, onde o garoto tem aulas de pintura. Em comum, mestra e aprendiz convivem com a limitação e com o aprendizado da superação
O sonho de Mateus ; que é o mesmo sonho de Leda ; é abrir um ateliê. ;Pra gente pintar mais;, ele diz, colocando o dedo na abertura da traqueostomia, para que se possa escutar melhor sua voz. Os dois, agora, compartilham desejos e segredos. ;Já tô começando a ficar com ciúmes dele;, brinca o caminhoneiro Amauri Ferreira Lima, 42, marido de Leda. Dirlei, morta de felicidade, também se mete na ciumeira: ;Ele agora só quer saber da Leda;. Adair, o pai, nunca esteve tão feliz com o interesse do único filho e a súbita vontade de reinventar a vida: ;Ele me surpreende a cada dia. O Mateus não tem limites;.

Tarde da última sexta-feira, 15h30. Leda chega, empurrada pelo marido, à casa de Mateus. É mais uma visita. Pela manhã, houve aula ; na casa dela. Agora, foi a vez de ela visitá-lo. De longe, ele a vê chegando ao portão. Escancara o sorriso de quem reconhece afeto. Sentados em suas cadeiras de rodas, ele se abraçam. E esticam uma conversa que não tem mais fim. Tofe, o vira-lata que o acompanha e o defende com patas e principalmente dentes, assiste a tudo. Fica alerta. Até Tofe reconhece Leda. E a deixa ficar perto do seu pequeno dono.

Pergunto a Leda o que tudo aquilo passou a representar em sua vida. Ela olha para o amigo-aluno e diz, da forma mais simples que poderia resumir aquele encontro: ;Se o Mateus pensa que eu ajudei ele em alguma coisa, foi ele quem me ajudou. Ele me fez um bem que nem imagina ter feito;. Mateus ri. Apenas ri. Nem precisa colocar o dedo na abertura da traqueostomia, para que sua voz saia mais alto. Prefere mostrar o pequeno pudim que ajudou a avó a preparar.

Mateus adora gastronomia. Sempre que pode, pede para ficar na cozinha e ver como se preparam os alimentos. Todos os dias, às 13h, ele para tudo que porventura esteja fazendo para assistir pela tevê (que chega à sua casa em antena parabólica) a um programa de culinária que uma velhinha simpática ; com cara de vovozinha ; apresenta. Mateus ;conversa; com a cozinheira. Bate altos papos. E o que vê na telinha pede para fazer junto a avó materna.

Emocionada, Dirlei reflete: ;Diante de tudo que vivemos com ele, da incerteza se meu filho estaria vivo ou não no dia seguinte (Mateus chegou a pesar, aos 8 anos, 12kg, e os médicos chegaram dizer que tudo havia sido feito), só posso dizer que tenho certeza de que Deus existe;. Leda, a professora, devota de Nossa Senhora Aparecida, também tem a mesma certeza.

Amanhã, Mateus rumará para a casa de Leda. Inventarão juntos um novo modelo de pano de prato. Conversarão sobre a vida. Ele a fará melhor. Ela lhe dará a certeza de que a vida é boa demais. Sem imaginar, Mateus salvou a vida de Leda. E Leda, infinitamente grata, lhe deu um ânimo danado para continuar acreditando em sonhos. Às vezes, é preciso quase morrer para voltar a viver. Esta história é feita, antes de qualquer coisa, de renascimentos e de uma infinita capacidade de amar.

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