Cidades

Viúva do presidente da Novacap está com 103 anos e uma lucidez admirável

Coracy Pinheiro, sempre atenta ao que acontece no Brasil, indigna-se com a "bandalheira" da política e lamenta que o marido não seja reconhecido na história como merece

postado em 24/02/2010 08:44
Diz a lenda que o presidente da Novacap, Israel Pinheiro, só tinha medo de uma pessoa, de uma linda mineira de cabelos claros, dez anos mais nova, chamada Coracy, sua mulher. Conta-se também que, quando algum engenheiro queria fazer algum pedido ao todo-poderoso da construção, recorria a ela. Foi assim, por exemplo, quando um grupo deles, recém-formados, reivindicou equiparação salarial com os demais.

Israel morreu em 1973. Dona Coracy, 103 anos, mora num amplo apartamento no bairro de Lourdes, um dos mais valorizados de Belo Horizonte, cercada de móveis antigos e fotos da família. Mas não é o que parece. A matriarca de uma família de nove filhos e 82 netos, bisnetos e tataranetos não vive de lembranças. O corpo cede às imposições do tempo, mas a memória está aguda e a voz responde com vigor à indignação que sente diante das ;bandalheiras; que acontecem na política brasileira e da injustiça que se pratica com a memória de Israel Pinheiro.

Dona Coracy hesitou em dar entrevista. Temia que a memória não respondesse à altura do que se pudesse esperar. O ex-deputado federal Israel Pinheiro Filho ficou ao lado da mãe com a intenção de ajudá-la a reacender as lembranças. Não foi necessário. A mineira nascida em Paracatu, filha de um médico alagoano, que estudou no Colégio Sacré-Coeur de Marie, no Rio de Janeiro e que se casou aos 18 anos com o engenheiro formado em primeiro lugar na Escola de Minas de Ouro Preto, desfiou reminiscências, mas não se deixou amortecer pela nostalgia. Entremeou poucas lágrimas com alguns sorrisos, uma gargalhada e muita indignação.

Ao contrário do que relata a história oficial, Israel Pinheiro não veio para Brasília a reboque dos ideais de Juscelino. Quando era deputado federal, presidente da Comissão de Finanças da Câmara (a hoje Comissão de Orçamento), Israel subiu várias vezes à tribuna para defender a transferência da capital para o interior do Brasil. ;Ele fazia isso sem nenhuma intervenção de Juscelino. Era uma coisa que partiu dele. Toda vida Israel gostou da ideia de Brasília. Ele acreditava que o Brasil estava muito resumido ao Rio de Janeiro, que precisava ir para o interior.;

Rumo a Brasília
No dia em que Israel chegou em casa e contou que o presidente da República o havia convidado para comandar a construção de Brasília, Coracy ficou apreensiva: ;Fazer uma cidade em três anos não era brincadeira, não;. Aceito o convite, começada a construção, Israel trouxe a mulher para a Granja do Ipê (os nove filhos ficaram estudando no Rio de Janeiro). Era uma casa de madeira com três quartos ; um para o casal, outro para Juscelino, um terceiro para os pilotos. O cozinheiro dormia numa prateleira da despensa.

Na primeira vez que veio a Brasília, a apreensão de dona Coracy se agravou. Ela teve medo de o marido não dar conta da tarefa. ;Ele era um homem brilhante nas ideias, no comportamento. Era uma pessoa muito correta e positiva, mas achei tudo muito difícil. E falei pra ele: ;Pensa bem, porque não vai ser fácil;.; O cerrado aberto e desértico, a ausência de estradas, de alimentação, a dificuldade inicial para a contratação de operários, tudo isso deixou dona Coracy aflita.

Mas o convite já tinha sido aceito e Israel nem pensou na possibilidade de desistir, até porque não havia tempo para tanto. Ele já estava completamente envolvido com as obras, das 6h, quando o motorista já o esperava para percorrer as obras e despachar no galpão da Novacap, na Candangolândia, até a noitinha, quando chegava para jantar. ;Israel não era homem da noite, era do dia. Depois de jantar, ele ia dormir.;

Qual a importância de Israel Pinheiro para a construção de Brasília? Feita a provocação, a resposta é clara, límpida, firme: ;Foi máxima. Foi ele que fez tudo. Juscelino dava o dinheiro, mas quem batalhou foi ele, todos os dias da construção;. Havia dois homens a quem o presidente da Novacap ouvia com muita frequência: Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Com o primeiro, as relações eram cordiais. Com o segundo, nem tanto. ;Eles às vezes discordavam, mas eram brigas de amor;, ela suaviza, mineiramente.

Sobre o temperamento irascível do marido, dona Coracy diz que ele apenas reagia àquilo com que não concordava. Irritava-se, sobretudo, com pedidos de pagamento para jornalistas. ;Ele tinha horror a dar entrevista. Era um homem fechado, mas depois que se abria, era muito bom de coração.; Também não gostava de se vangloriar. Tanto que até hoje as filhas avaliam se devem ou não colocar o busto do pai no Espaço Israel Pinheiro, atrás da Praça dos Três Poderes. ;Ele não ia gostar;, diz Israel Filho.

Há mágoa no relato de dona Coracy. Uma delas, pelo fato de Juscelino Kubitschek ter desprezado a participação de Israel Pinheiro em Por que construí Brasília, livro de memórias publicado depois que JK foi cassado. ;O livro foi escrito por Cony (Carlos Heitor Cony), mas ele leu e aprovou, claro;, reage Israel Pinheiro Filho. Se foram muito boas as relações entre JK e Israel Pinheiro durante o período da construção, elas se deterioraram no tempo da cassação e do exílio de Juscelino. Já no discurso de despedida que fez no Senado, os dois se desentenderam. Israel considerava desnecessário o pronunciamento incandescente, mas Juscelino não levou em conta o conselho do amigo e subiu à tribuna. ;Houve muita intriga;, resume a nem sempre mineira dona Coracy.

;Milagre;
Ela, como o marido, atribui a construção de Brasília a um ;milagre de dom Bosco;. Israel Pinheiro era um fervoroso devoto do padre italiano. Tanto e tanto que mandou construir a Ermida tão logo chegou ao Planalto Central. ;Foi a primeira obra em alvenaria da cidade;, conta dona Coracy. ;Meu pai pediu pra que eu lançasse o concreto na Ermida;, conta Israel Filho. Quando a mulher ponderou, logo depois do convite de Juscelino, que talvez a tarefa de construir Brasília fosse impossível de ser realizada, Israel retrucou com a firmeza habitual: ;Eu vou conseguir, dom Bosco vai me ajudar;.

O mesmo cristão devotado era também espiritualista. A mãe de Israel, dona Helena, era amiga de Chico Xavier, quando o médium ainda era desconhecido no Brasil. No tempo em que foi governador de Minas Gerais (1966/1971), o marido de dona Coracy recebia mensagens constantes do pai, João Pinheiro (1860/1908), enviadas por intermédio do espírita. João Pinheiro foi um político brasileiro de grande expressão em sua época.

Quando Brasília ficou pronta, Israel Pinheiro atribuiu a conquista a dom Bosco. Na segunda-feira passada, dona Coracy parou um pouco, pensou e disse: ;Brasília foi um milagre, um sonho. Já corri muitas cidades do mundo, e acho Brasília formidável, uma coisa diferente. Os brasileiros não compreendem Brasília, pouca gente compreende. Israel acreditava que Brasília iria levar indústrias, emprego e bem-estar para o interior do Brasil. Brasília melhorou muito o interior do Brasil. Dizem por aí que se gastou muito dinheiro para construir Brasília; se gastou, foi bem gasto.;.

Dona Coracy aceitou dar entrevista para honrar a memória do marido: ;Ele foi um homem cem por cento;.

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