postado em 26/02/2010 09:54
Ela rabisca letras como se escrevesse a vida. Na verdade, é isso que está tentando fazer. Aos 90 anos, decidiu que mudaria a própria história. Desenhando uma a uma as letras, viu o nome surgir diante dos olhos. Encantou-se quando descobriu do que seria capaz. Naquela folha de papel, mais do que o nome, ela rabiscou a certeza da dignidade com a qual sempre sonhara. Agora, sim, ela se reconhece como Isabel Maria da Conceição. ;Tô contando os dias pra tirar minha nova carteira de identidade;, planeja.Bacuri, confins do Maranhão, povoado de Bacabal. Dezenove de dezembro de 1919. Lá nasceu Isabel, filha de um sapateiro e de uma roceira. O pai deixou a família logo em seguida. Partiu nesse mundão de meu Deus. Tempos depois, a mãe morreu. Isabel contava 15 anos e foi viver com outra família, numa espécie de adoção afetiva. A única irmã também foi morar com uma outra família. A adolescente Isabel cresceu acreditando que, em função de ter sido amparada na morte da mãe, havia ganho tudo que a vida podia oferecer.
Logo cedo, começou a trabalhar na roça. Plantou e colheu arroz de sol a sol. Um dia, com mais de 30 anos, apareceu um certo Raimundo, homem trabalhador como ela. Decidiram que plantariam e colheriam juntos. Casaram-se. Nasceram os três filhos. A peleja aumentou. Às 4h da manhã, Isabel já estava na roça. ;Eu plantava, colhia e pilava o arroz no pilão;, conta. ;Essas cambitinhas afinaram de andar léguas e léguas todos os dias.;
Um dia, antes dos 40 anos, longe de qualquer coisa que lembrasse médicos ou remédios, Raimundo sentiu uma dor na costela. Perdeu a vontade de comer. A força foi minando. Entristeceu-se. E morreu, pouco a pouco. Isabel chorou. Depois do enterro, enxugou as lágrimas e voltou para a roça. Havia muito arroz para colher e pilar. A vida seguia. Isabel decidiu que trabalharia até o fim dos seus dias.
Algum tempo depois, Francisco, mais jovem 17 anos, começou a cortejar a viúva. Ele tinha 23. Ela beirava os 40. Ele insistiu. Ela resistiu por um pouco. Mas cedeu. Francisco sempre fora envolvente. Isabel amou Francisco como nunca havia amado alguém. Nem Raimundo, o primeiro marido. Casaram-se. Nasceu a quarta e última filha de Isabel ; Domingas, hoje com 48 anos.
O casal foi trabalhar na roça. Compraram uma terrinha ali mesmo no povoado. Além de plantar e colher mandioca e arroz, ela criava galinhas no quintal. O tempo passou. Isabel envelheceu. Francisco, mais moço, tornou-se um galanteador das moçoilas da redondeza. ;Ele nem fazia escondido. Era com uma e com outra. A amante morava na mesma rua. Eu ia na frente e ela, atrás. O povo tudo sabia.;
Mas, aos poucos, Isabel adoeceu de tristeza. Não sabia e nunca tinha ouvido falar em depressão. ;Eu chorava e só queria dormir. Não saía de dentro de uma rede. Não tinha mais gosto pra nada, nem pra trabalhar.; O acabrunhamento de Isabel começou a preocupar as filhas, que já moravam em Brasília. Elas, então, decidiram que a mãe teria que vir pra cá. Compraram-lhe uma passagem de avião. Isabel embarcou em São Luís com destino à terra que a faria renascer. ;Só tive medo da viagem antes de entrar no avião. A aeromoça cuidou bem de mim.;
"A garrafa quebrou"
Isabel desembarcou em Brasília aos 77 anos. Partira para muito longe da roça e de Francisco, que se casara novamente e povoou ainda mais a humanidade. Casou-se com uma moça mai jovem do que sua filha. Aqui, a roceira virou avó em tempo integral. Cuidava dos netos e da casa da filha como se dela fosse. Descobriu que podia voltar a sorrir. A tristeza aos poucos foi cessando. Isabel passou a fazer ginástica num posto de saúde perto de sua casa, em Santa Maria. Viajou de avião outras vezes. Fez amigos na igreja que frequenta. E passeou muito.
Tempos depois, Francisco veio a Brasília. Hospedado na casa da filha ; com quem Isabel mora ;, ele quis conversar com a ex-mulher. Pediu-lhe desculpas pelas coisas que havia aprontado. Queria recomeçar ; onde ela quisesse. Miudinha do que jeito que é, Isabel olhou-o com compaixão. E disse, decidida: ;Chico, a garrafa quebrou. Quando quebra, não tem mais como consertar;. Francisco entendeu. ;A gente hoje é amigo. Outro dia, ele até me pediu um dinheirinho emprestado;, ela diz.
Isabel seguiu. Fez ainda mais amigos. Viu os bisnetos nascerem. Tornou-se forte mesmo com a aparente ; só aparente ; fragilidade. Não perde um dia na ginástica. Regula a hipertensão ; controlada com remedinho. E adora cozinhar. Cuxá (prato feito com uma erva chamada vinagreira, típica comida maranhense) não falta à mesa. Quando a filha diarista vai trabalhar no Plano Piloto, é ela quem cuida da casa. ;Só não faço mais serviço de limpeza, por causa da minha coluna, mas na cozinha eu cuido de tudo.;
No segundo semestre do ano passado, perto de completar 90 anos, Isabel resolveu, novamente, recomeçar. Queria não mais sentir vergonha dentro da igreja, quando todos abriam a Bíblia e liam coisas que ela só conseguia escutar. Queria ser igual aos outros, como sempre se sentiu. ;Quando eu era menina, fui trabalhar nas casas alheias. Uma mulher disse que ia me ensinar as letras. O que ela me ensinou foi me dar filho pra carregar na carcunda (nas costas).;
Dignidade
Madalena de Souza Silva, artesã, 48 anos, vizinha de Isabel, bateu-lhe à porta. Contou-lhe que haveria um projeto onde pessoas como ela ; que nunca tinham estudado ; iam aprender a ler e a escrever. ;A senhora gostaria de estudar?;, indagou. ;Será que aprendo?;, devolveu Isabel. A vizinha lhe prometeu que sim. Os olhos pequenininhos de Isabel brilharam como nunca haviam brilhado.
Ela esperou a filha chegar do trabalho. E lhe falou do convite. Domingas teve receio: ;Será, mamãe, que a senhora ainda consegue?; Isabel lhe disse que tentaria. Na noite seguinte, lá estava ela, a mais idosa aluna do projeto ABCDF (programa do GDF para erradicar o analfabetismo). Os alfabetizadores, voluntários, são moradores da comunidade. Eles mesmos montam suas turmas, batendo de porta em porta, atrás de quem nunca conseguiu chegar a uma escola. As turmas, com até 25 alunos, são criadas onde houver um espaço ; igrejas, associações, centros comunitários. ;Em quatro anos, já conseguimos alfabetizar mais de 50 mil pessoas em todo o DF;, contabiliza o professor Alfredo Scheuer, 48 anos, coordenador do projeto em Santa Maria.
As aulas da turma de Isabel são realizadas numa sala do Centro de Ensino Fundamental 201, que cede o espaço. Toda noite, de segunda a quinta-feira, das 19h30 às 21h30, a mulher de 90 anos sai de casa, em companhia da professora, com disposição de menina. Anda a pé por 15 minutos e chega ao lugar onde passou a vida inteira tentando entrar. ;Tem gente que tem vergonha de aprender. Eu demorei, mas consegui.;
Ganhou uma mochila vermelha da filha. Carrega-a no ombro. Encheu de lápis de cor, cadernos, borracha e apontador. Virou estudante. ;Ela é a mais idosa da turma e uma das três mais esforçadas. Traz todas as tarefas de casa prontas;, elogia a professora. ;Hoje, eu não tenho mais dúvida de que ela é capaz;, admite a filha. Extasiada com a história que ; literalmente ; começa a escrever, Isabel fala, com emoção à flor da pele: ;Pra mim, eu tô vivendo outra vida. Me sinto outra pessoa;.
Daqui a quatro meses, a encantadora Isabel receberá o diploma de alfabetização. Pregará na parede da sala da casa da filha. E se orgulhará de ter ido tão longe daquela roça onde plantava arroz. Aos 73 anos, lá no Maranhão, Francisco continua sem conhecer as letras. Aos 90, Isabel começou, de verdade, a viver. ;Esperei isso a vida todinha;, reflete. E faz uma promessa, que emociona e faz esconder, atrás dos óculos escuros, as lágrimas de quem ouve. ;Olha, meu filho, eu vou mandar uma cartinha pra você lá no jornal.; Será a melhor carta, em todos esses tempos, que chegará às minhas mãos.