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Uma mulher e tanto

Dona Solam Kozak e seu marido, Raffic Gebrim, foram donos de um dos maiores armazéns da Cidade Livre. Forneciam ferramentas e mantimentos para as construtoras e de tudo um pouco para os operários

postado em 27/02/2010 08:56
É muito provável que a brilhantina tenha sido o primeiro produto industrializado a chegar aos armazéns da Cidade Livre. Certamente, era um dos mais procurados. ;Eu vendia de 20 a 30 mil dúzias de brilhantina por mês;, conta, com ponto de exclamação, dona Solam Kozak, nome desconhecido da maioria dos bravos candangos. A síria nascida na aldeia de Nabah Karkan (que quer dizer corrente de fonte de água) era conhecida na Cidade Livre e arredores como dona Assiriana, junção do nome do armazém A Siriana, localizado à Segunda Avenida n; 1.240 e, segundo ela, o maior fornecedor de ferramentas, mantimentos, bebidas e miudezas para construtoras e operários.

Dona Solam Kozak e seu marido, Raffic Gebrim, foram donos de um dos maiores armazéns da Cidade Livre. Forneciam ferramentas e mantimentos para as construtoras e de tudo um pouco para os operáriosNaquela segunda metade dos anos 1950, a brilhantina estava para os homens como os batons, hoje, estão para as mulheres. Do presidente da República ao mais anônimo candango, a maioria dos cavalheiros emplastava o cabelo com uma pasta amarela, brilhosa, gosmenta e perfumada. Quem comprava brilhantina no A Siriana levava também o pente Flamengo e o espelhinho ovalado com a foto de uma mulher nua no verso. Nos primeiros tempos, quando o armazém ainda tentava se firmar no mercado (era grande a concorrência), dona Solam tinha tempo para costurar as roupas novas das prostitutas da Cidade Livre. Elas eram ;bonitas e educadas e que vieram para cá, como todos nós, para ganhar a vida;.

A freguesia de dona Assiriana acreditava, quase toda ela, que a síria dona do armazém era viúva ; não apenas por conta das roupas demasiadamente sóbrias que usava (saia preta e blusa branca ou variações em torno dos mesmos tons), mas em razão da ausência constante do marido da proprietária do estabelecimento. Raffic Gebrim passava a maior parte do tempo explorando areia, pedra e cascalho nos arredores do Plano Piloto.

Foi assim desde quando, recém-casados, chegaram ao Brasil. Vieram para a Colônia Agrícola de Ceres, em 1949, no rastro de Bernardo Sayão. Trouxeram, como patrimônio, o talento sírio para os negócios. Raffic comprava a colheita dos lavradores e a revendia para fornecedores do Sudeste. Dona Solam foi cuidar do armazém, até que a chegada de grandes indústrias a Ceres e a queda no preço do feijão levou os pequenos comerciantes à bancarrota. Decidiram então se estabelecer em Anápolis e de lá a Brasília foi um pulo.

Rato, cobra e jacaré
No começo de 1957, Raffic Gebrim chegou à Cidade Livre disposto a comprar um lote para montar um armazém. A doença de um dos três filhos do casal adiou o projeto. A família só chegou a Brasília em julho. ;No aeroporto, uma senhora perguntou o que eu estava fazendo ali com meus filhos. Disse que vinha ao encontro do meu marido, para morar na cidade, e ela me aconselhou: ;Filha, volta, volta. Aqui não vive gente. Tem rato, tem cobra, tem jacaré, tem lobo-guará, tem tudo.;;

Tinha mesmo. Os ratos faziam fila no telhado do armazém. Para combatê-los, Gebrim comprou rato branco, porque, segundo se acreditava, eles não eram danosos como os marrons e gostavam de comer os mais escuros da espécie. Não deu certo: ratos brancos e marrons se acasalaram e o resultado foi uma ninhada de ratos manchados que se proliferaram com a velocidade habitual. Roedores do lado de dentro de casa, cobras nos arredores. A filha mais velha de dona Assiriana, Leila Gebrim, conta que o pai ensinou a ela e aos irmãos como enfrentar uma cobra-coral. ;A gente jogava algo pra ela morder, assim ela expelia o veneno.; Havia outra espécie, negra e inofensiva, com a qual as crianças brincavam de fazer colar, o que assustava a muito corajosa dona Solam.

A síria do armazém queria fazer fortuna e sabia que para isso precisava vender muito mais do que brilhantina. O destino bateu à sua porta. Certo dia de 1957, um candango mal-educado freou o jipe na porta do armazém e uma nuvem de poeira envolveu dona Assiriana, que, como manda a tradição dos velhos mercadores sírios, ficava sentada na porta do armazém convidando os fregueses a se aproximarem. ;Boa-tarde;, disse o homem. ;A senhora tem manteiga?; Tinha sim. ;Não achei manteiga em nenhum lugar da Avenida Central;, ele reclamou. ;Eu sei;, comentou dona Assiriana, com um sorriso. O homem perguntou se podia ;assinar a nota; ; era a senha para comprar fiado, o cartão de crédito do tempo da construção.

Assinada a nota (um papelzinho qualquer que estivesse à mão), o homem alto e forte foi embora, mas não andou uma dezena de metros. Voltou e perguntou: ;Como a senhora sabe que não tem manteiga nos outros armazéns?;. Dona Assiriana respondeu que, se houvesse, ele não teria chegado ao estabelecimento dela (o centro nervoso da Cidade Livre era na Avenida Central e o Assiriana ficava na Segunda Avenida). Dessa conversa, surgiu o primeiro grande compromisso do armazém: fornecer produtos para a Construtora Camargo Correa. Dona Solam garantiu que, no prazo de três dias, cumpriria todos os pedidos de compras da empreiteira. Começou aí a fase de grande crescimento do Assiriana.

Prosperidade
Durante quase quatro anos, de julho de 1957 a 1961, dona Assiriana atendeu às construtoras e aos candangos fornecendo de pá a carrinho de mão, de cachaça a grampo de cabelo, de prego a dinamite. Faça-se a ressalva: a venda de dinamite era proibida (e até hoje é controlada). Então, a dona do armazém criou um codinome para o explosivo usado para dinamitar rochas. O freguês deveria perguntar se havia ;banana; para vender.

A síria era por demais esperta, como no dia em que um candango tremendo de frio (era intenso o inverno em Brasília) perguntou se ali se vendiam agasalhos. Num canto do armazém, dona Assiriana mantinha uma prateleira com algumas peças de roupa femininas que haviam sido deixadas por um primo. Ela vendeu uma peça para o peão friorento e não avisou que era de mulher, mas sugeriu: ;Você veste e quando chegar em casa dá de presente pra esposa;. No dia seguinte, a presenteada apareceu no armazém: ;Dona Assiriana, a senhora vestiu roupa de mulher no meu marido;. A síria abriu um sorriso e falou bem baixinho: ;Bobinha, ele ficou livre do frio e você ganhou um presente;.

O marido de Solam Kozak, Raffic Gebrim, morreu em 2005, aos 82 anos. Uma tragédia financeira levou boa parte do patrimônio da família, que foi dona da primeira rede de supermercados de Brasília, o Ninar, com três lojas na Asa Sul. Dona Assiriana, como os bravos candangos a conheciam, mora ainda hoje no primeiro prédio construído na Asa Norte ; e está lá, escrito na fachada, em letras graúdas, a marca da família: A Siriana. Dona Solam está com 81 anos. Teve três filhos, tem seis netos e dois bisnetos. Ela pede que se registre: as conquistas foram dela e do marido, ;um homem lindo, lindo. Amo ele ;de montom;;, diz dona Solam, com seu incontornável sotaque árabe. Ela diz que Brasília lhe ensinou a gostar do Brasil.

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