Cidades

Criança nascida com sexo não definido encontra dificuldades para se identificar

Criança nascida com má-formação nos genitais enfrenta dificuldades para se identificar e sofre porque, mesmo tratado em casa como o menino que é, oficialmente seu sexo é indefinido e a pessoa não existe

Juliana Boechat
postado em 04/03/2010 08:33
Quando chega alguém à casa de Fátima*, no Recanto das Emas, Carlos*, 5 anos, é a única criança que não corre para o portão para recepcionar o visitante. Ele prefere ficar quieto, próximo à pequena sala de estar. Mas basta puxar um assunto qualquer para o garoto se desmanchar em sorrisos e abraços. A timidez, para Carlos, nada mais é do que uma maneira de se defender. Quando nasceu, em Serra Dourada, na Bahia, os médicos o registraram como menina graças à má-formação nos órgãos genitais. Maria*, mãe de Carlos, nunca conseguiu fazer sua Certidão de Nascimento. Sem o documento(1), ela é obrigada a explicar a situação da criança toda vez que precisa realizar uma viagem e ao ser impedida, por exemplo, de matricular o filho na rede pública.

Mãe e filho: garoto precisa se submeter a tratamento especial para poder ter funções hormonais regularizadas e viver a vida como um ser comumDurante os nove meses de gravidez, Maria não fez ultrassom para saber o sexo do bebê. Logo depois do complicado parto, em um hospital público de Serra Dourada, foi avisada que acabara de dar à luz uma menina. Em seguida, a família foi transferida para o centro de saúde de Barreiras, outro município baiano, onde ela teve o primeiro contato com o bebê. Ali, percebeu que era um menino. Quando chegou ao DF, Carlos iniciou o tratamento no Hospital Materno-Infantil de Brasília (Hmib), na Asa Sul. Ele chegou a tomar hormônios masculinos e passou por várias avaliações. A falta de dinheiro, no entanto, impossibilitou a continuidade do atendimento médico. ;Durante esse período, eles não definiram nada sobre o sexo de Carlos, se ele é menino ou menina;, contou a mãe.

Dois anos depois, Maria reuniu novamente esforços para acabar com o sofrimento do filho. Voltou ao Hmib e conseguiu marcar a primeira consulta do tratamento para o próximo dia 11. ;Me falaram que não vai chegar a ser uma cirurgia, apenas uma correção. Carlos tem todos os órgãos, mas eles não estão à mostra;, contou Fátima. A criança passará os próximos dias na casa dos avós, enquanto a mãe trabalha. ;O problema é que não temos condições de bancar tantas idas e os remédios, além do que algumas consultas podem ser fora da rede pública. Ainda não sabemos desses detalhes;, acrescentou Maria. O hospital não retornou as ligações do Correio na tarde de ontem.

Timidez
Carlos mora com três irmãos, o pai e a mãe em um cômodo de uma casa em Vicente Pires. Quando sai, é para visitar a avó ou a tia e brincar com os primos. ;Ele é muito quieto e tem receio de brincar com outras crianças. Às vezes, entramos em casa e ele está sozinho, chorando;, contou a avó. A maior preocupação da mãe de Carlos é expor a situação dele às outras pessoas. ;As pessoas comentam e pedem para ver. Já deixei ele com uma pessoa enquanto trabalhava, e ela expôs o problema dele para toda a vizinhança. Isso é horrível;, contou. Segundo ela, Carlos sabe que é diferente dos outros meninos: ;Ele me perguntou quando o pintinho dele vai crescer. Ele vê o irmão e comenta;.

Além de acabar com a angústia de toda a família, a mãe de Carlos não vê a hora de regularizar a situação do filho. Os únicos documentos que comprovam a cidadania da criança são o cartão de vacina e uma xerox da Declaração de Nascido Vivo, com o sexo correto de Carlos expedido no hospital de Barreiras. Ainda assim, Maria não consegue registrar o filho no cartório porque é necessário o documento original que comprova o nascimento da criança. O hospital, no entanto, não disponibiliza a cópia autêntica. ;Já tentei registrar meu filho até como se tivesse nascido em casa, de todas as maneiras que pude. Mas não consigo de jeito nenhum. Todos nos falam que temos que ter a comprovação do sexo dele para ele levar uma vida normal;, disse a mãe, angustiada.

1 - Primeiro registro
O documento que oficializa o nascimento de uma pessoa é a Declaração de Nascido Vivo, expedida ainda no hospital. Este é um dos documentos necessários para que a criança seja registrada em cartório e receba a Certidão de Nascimento. A certidão, além de ser um documento de identificação, é a primeira garantia de cidadania e de direitos aos brasileiros.

*Nomes fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Luta constante
Carlos já iniciou o tratamento uma vez. Mas, por falta de dinheiro, os pais foram obrigados a interromper as idas ao hospital. Como o irmão mais novo dele sofre de uma doença parecida, a mãe e um acompanhante levavam as duas crianças pelo menos uma vez por mês ao centro de saúde mais próximo de casa. Eram gastos R$ 12 por dia com transporte, além dos remédios necessários. Na época, a mãe de Carlos estava desempregada. Quem quiser colaborar de alguma forma com o tratamento do menino pode entrar em contato com os familiares dele pelos telefones 9929-6720 ou 3331-3699.

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