Cidades

Casal fotografa o cotidiano da família e de Brasília desde 1959

Severino e Joseny registraram a trajetória da família, a construção da cidade, o crescimento dos filhos e das árvores e as estripulias dos netos

postado em 06/03/2010 09:37
Joseny, com Mirinha, posa usando uma saia de tecido com estampa em homenagem a BrasíliaVeja a estampa das fotos ao lado: as colunas do Palácio da Alvorada fazem roda no corpo da jovem mãe, a brava candanga Joseny Azeredo de Lima, à época com 22 anos, hoje com 71. No colo, a primeira filha, Rosenilda Conceição, a Mirinha, candanga nascida em 8 de dezembro de 1959 no HJKO, o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira. No tempo da construção da nova capital, as indústrias têxteis celebraram o feito brasileiro lançando estampas com os traços de Oscar Niemeyer. Não sobrou fiapo dos tecidos, mas o esmero com que a família Lima se dedicou a fotografar a própria história e a de Brasília conservou a imagem da textura.

E não apenas dela. A família guarda um acervo singular de fotos domésticas que revelam o cotidiano de quem morava nos acampamentos da nova capital. Ao longo dos últimos 51 anos, Severino Ferreira de Lima A paixão pela fotografia acompanha o casal desde a chegada à capital que se construía: acervo é dos mais pitorescose sua mulher, Joseny, clicaram o correr de suas vidas, despretensiosamente, na cidade que ajudaram a construir. Desde o nascimento da primeira filha, Severino nunca mais largou a máquina de roubar a alma. Era almoxarife da Construtora Pederneiras e já havia montado um laboratório na sala da casa de madeira às margens do Lago Paranoá ainda em surgimento.

Nesse pequeno cômodo de eucatex, Severino revelava fotos que fazia para os candangos. Registros da presença deles na nova capital para serem enviados às suas famílias país adentro. Fazia as fotos com uma máquina Atlas daquelas que se olhava por cima. Depois, emoldurava-as em cartões de papelão, entremeadas por uma folha de papel-manteiga. Reproduzia 12 vezes a mesma foto para que o candango pudesse enviá-la, no cartão, para toda a família. Mas as exigências dos candangos eram demasiadas, como a da mulata que fez uma foto com o marido e o filho brancos. E não gostou de se ver escura na imagem e pediu ao fotógrafo que clareasse a pele dela.

Severino, então, desistiu de fotografar os candangos, mas continuou clicando a família. De seus guardados, aflora a lembrança da lambreta que ele trouxe do Rio de Janeiro. Veio dirigindo de lá até aqui numa rodovia ainda em construção. A lambreta sai da foto e movimenta doces reminiscências. Ela era o meio de transporte da família. Primeiro, dos três, Severino, Joseny e Mirinha. Depois, de quatro: Severino, Joseny, Mirinha e Rosângela. Mais tarde, eram cinco, todos na mesma lambreta: Severino, Joseny, Mirinha, Rosângela e Rosely.

Lambreta ;impermeável;
Quando a família cruzava o Plano Piloto de lambreta e a chuva surgia no largo horizonte da cidade, Severino muitas vezes conseguia o inimaginável: ele contornava a nuvem pesada sem que um pingo de chuva caísse sobre a família. Até que um dia, Joseny viu um aparelho de televisão chegando à casa da vizinha ; nesse tempo, eles havia se mudado para Taguatinga. Reclamou com o marido da solidão de Brasília e disse que uma loja na W3 estava vendendo tevês em 36 parcelas. As prestações começavam módicas, mas cresciam no decorrer do tempo e ficavam inviáveis para o orçamento da família. O jeito foi fazer uma troca com um amigo: a lambreta por uma televisão. Joseny achou bom, mas achou ruim. Ganhou a tevê, mas perdeu o transporte.

Depois de ter trabalhado na Pederneiras, de ter feito fotocópias para a Novacap e de ter fotografado candangos, Severino conseguiu um emprego na TV Nacional, primeiramente para fazer slides; depois, virou cinegrafista. Os coleguinhas o conhecem pelo apelido: Paraquedas. Como paraquedista do Exército, ele participara de Jacareacanga, a rebelião militar que pretendeu depor Juscelino Kubitschek em 1963. Dominada a insurreição, Severino pediu baixa porque não conseguia ser promovido.

Mirinha, entre Severino e Joseny, nos primeiros anos: tudo documentadoE veio para Brasília à procura de uma nova vida. Do combate contra Juscelino, passou ao combate a favor de Juscelino. Antes de deixar o Rio de Janeiro, casou-se com Joseny. Em três meses, os dois estavam morando na casa de madeira (;de madeira bruta por fora, de forro paulista por dentro, verde com teto rosa e rosa com teto verde;), bem perto de uma ponte de madeira que atravessava um córrego estreito, onde hoje é a Ponte das Garças. Joseny conta que, certa madrugada, acordou e pela janela viu um brilho ao longe. Pela manhã, descobriu que eram as águas do Lago Paranoá em busca de alcançar a cota mil (mil metros acima do nível do mar). Fez uma foto.

Imagens pitorescas

Uma das filhas de Paraquedas, Rosângela, foi paraquedista aos 13 anos e mereceu larga reportagem na revista Manchete. Papai Paraquedas passou a vida filmando e fotografando a história de Brasília. De seus álbuns, brotam fotos de Leila Diniz (com dois copos, um em cada mão), Eder Jofre, Ieda Maria Vargas (Miss Universo 1963), vários presidentes da República. Paraquedas tem, entre suas glórias, a história do dia em que filmou um funcionário público pulando do Ministério da Fazenda durante um incêndio. Um aparador de quedas do Corpo de Bombeiros amorteceu a queda e salvou a vida do servidor.

A glória de Joseny é outra: ela se orgulha de ter fotografado um flagrante de duas de suas netas. Ela as encontrou sentadas no chão da cozinha quebrando uma caixa de ovos e espalhando gemas, claras e cascas pelo chão. Era de se esperar que ela corresse para limpar a bagunça das menininhas. Mas a avó correu para pegar a máquina fotográfica e registrou o feito.

Severino e Joseny moram no mesmo bloco, na SQN 403, há 45 anos. Quando chegaram, tudo ao redor era chão vazio. Hoje, um flamboyant florido dança nas janelas do apartamento, no terceiro andar. Os bravos candangos têm oito netos e saudades de tempos difíceis, mas inesquecíveis. ;Foram os melhores anos da minha vida;, diz Joseny. Está tudo fotografado.

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