Cidades

Arquiteto veio para Brasília como um "boêmio e irresponsável"

Essa experiência mudou "radicalmente" a sua vida

postado em 10/03/2010 07:37

Comentava-se por todo lado: ;Lá na W3 tem um arquiteto fazendo uma casa de cima para baixo;. Juscelino ficou sabendo do boato e quis ver de perto a estripulia. Lelé conversava com os operários quando percebeu que todos eles mudaram o foco dos olhos. Passaram a observar alguma coisa ou alguém que estava às suas costas. Era o presidente da República disposto a conferir a invenção de João Filgueiras Lima, que havia desenvolvido uma tecnologia singular de construção emergencial de moradias para os candangos.

Morando atulalmente em Salvador, ele mantém contato com a cidade onde um dia se sentiu em Choveu exasperadamente entre o fim de 1959 e o começo de 1960. Lelé havia recebido um desafio: erguer 138 casas (na hoje 713 Sul) até a inauguração da cidade. O arquiteto, hoje reconhecido pela sua capacidade de encontrar soluções viáveis, elegantes e sustentáveis, havia desenvolvido uma tecnologia singular: decidiu começar a obra pelo telhado. Feita a cobertura, operários, solo e materiais ficavam protegidos para dar continuidade à tarefa.

;Adotei a solução de executar inicialmente as coberturas leves, em telhas de alumínio, sustentadas por tubos de ferro galvanizado que depois ficariam embutidos nas alvenarias. Com isso, foi possível realizar praticamente todos os serviços, inclusive os das fundações, totalmente ao abrigo das chuvas;, conta Lelé, de Salvador (BA), onde mora há 20 anos, e de onde avista Brasília, seja nos muitos projetos que já executou e continua a desenvolver na cidade, seja nas largas lembranças que tem dos tempos da construção.

O mais recente projeto de Lelé a ser executado na cidade é o beijódromo da Universidade de Brasília, que ele projetou a pedido de Darcy Ribeiro. O mais antigo são os acampamentos que construiu para erguer a 108 Sul, a superquadra modelo, e a 108 propriamente dita. Entre um e outro, nos últimos 50 anos, ele projetou as unidades da Rede Sarah (em Brasília e no restante do país), o Hospital Regional de Taguatinga, o Minhocão (em parceria com Oscar Niemeyer), a Colina Velha, casas e prédios institucionais.

Futebol e acordeão

Mesmo morando em Salvador, Lelé nunca saiu de Brasília. Vem aqui pelo menos uma vez por mês. Aqui moram a ex-mulher, duas filhas e muitos amigos. Dr. Lelé, como é chamado por muitos, é mesmo doutor em arquitetura integrada ao ser humano e ao meio ambiente, e Lelé em delicadeza e suavidade. O apelido nasceu dos tempos de juventude, quando jogava na mesma posição, meia-direita, de um artilheiro do Vasco em 1946. Carioca, 78 anos, ex-boêmio, ex-comunista, hoje um crítico do capitalismo, Dr. Lelé tira de um baú mágico histórias de uma Brasília que mudou ;radicalmente; a sua vida.

Filho de um pianista que tocava nas projeções de filme mudo, Lelé chegou à adolescência tocando arcodeão em boates do Encantado, subúrbio do Rio de Janeiro. Abandonou o Colégio Militar e foi trabalhar de escriturário até que um amigo, vendo que o garoto vivia fazendo caricaturas, lhe sugeriu a arquitetura. ;Foi um milagre eu ter passado (no vestibular). Fui fazer arquitetura sem saber o que era ser arquiteto.;

Quando Juscelino anunciou a construção de Brasília, em 1956, Lelé estava concluindo o curso. O jovem arquiteto trabalhava no Instituto de Assistência Previdenciária dos Bancários (IAPB), como desenhista, quando decidiu se oferecer para aventurar-se no Planalto Central. ;Os cariocas, de um modo geral, não só rejeitavam a criação de Brasília, como desprezavam aqueles que queriam vir. As pessoas que vieram no começo foram caçadas a laço.; Lelé se laçou por si mesmo.

Chegou aqui com a responsabilidade de executar os 11 blocos de apartamentos da 108 Sul. Oscar Niemeyer olhou para o jovem arquiteto e comentou, em tom de brincadeira: ;Que coragem, hein, rapaz!”. Da noite para o dia, da apresentação em boates para o sol invasivo do Planalto Central, a vida de Lelé mudou radicalmente. ;Eu era um irresponsável, era meio louco. De repente, vim pra cá e passei a ter uma responsabilidade enorme, passei a acreditar no que estava fazendo. Foi uma transformação radical na minha personalidade.; O salário também teve um solavanco: dos cinco mil cruzeiros que ganhava no Rio, passou a receber 25 mil.

Em reunião no IAPB, ele tocava acordeão para a turma: animaçãoPrecariedade
No começo, em 1957, arquitetos e engenheiros tinham de tomar decisões solitárias. Os acampamentos ficavam distantes uns dos outros, as estradas que os ligavam eram incipientes, não havia telefones e muitos dos profissionais mais experientes haviam ficado no Rio de Janeiro. ;Só tínhamos 20 minutos do sábado para falar com eles, pelo rádio, lá da Fazenda do Gama.; A precariedade dos contatos, a urgência da tarefa e o tamanho da responsabilidade obrigaram Lelé a varar noites estudando e tentando, sozinho, resolver os impasses.

Mas havia um ingrediente hoje rarefeito no meio profissional e pessoal: a solidariedade. ;Brasília me despertou para valores humanos que numa cidade grande não são levados em conta. As dificuldades de sobrevivência, a solidão, facilitavam as amizades. Como não havia família por perto, precisávamos de amigos. E eu tive muitos amigos;. As relações davam-se, por exemplo, assim: Lelé dividia o quarto com o contador do IAPB, Airton Pinheiro, que pouco depois de chegar a Brasília começou a apresentar inflamações debaixo do braço, tudo indicando reação à alimentação precária do canteiro de obras. ;De noite, eu ficava espremendo os furúnculos do meu amigo e fazia isso com muita alegria, eu sabia que estava ajudando uma pessoa. Aí passei a perceber que quando você ajuda se enriquece mais do que quando recebe uma ajuda.;

Amizades construídas em ambiente de não muita tranquilidade. Havia muito dinheiro correndo na capital em construção, e vários dos candangos que vinham para cá chegavam armados. ;Pedíamos todas as armas dos operários e guardávamos elas num quarto. Havia as coisas mais estranhas, que eu nunca tinha visto: punhais, revólveres antigos, até um bacamarte.; Também não eram poucos os acidentes de trabalho. ;Eram muitos, muitos. Eles(os operários) trabalhavam dia e noite, faziam hora extra, estavam cansados, não tomavam cuidado e não havia as mesmas condições de segurança que se tem hoje. Foi o preço.;

Bacamarte entre os operários, pancadaria entre os profissionais graduados. Na festa de inauguração da primeira cumeeira a ficar pronta nas superquadras, o pianista e galanteador Bené Nunes se engraçou com a mulher do arquiteto Alfredo França. O uísque, muito farto no canteiro de obras, havia jorrado generosamente durante a festa. França deu um soco no queixo de Bené e a briga acabou se alastrando. Foi um deus nos acuda. A essa altura, ;felizmente;, lembra-se Lelé, Juscelino já havia ido embora.

Trabalhava-se muito, mas vivia-se intensamente os instantes de lazer. Churrascos, cachaça, shows, serestas. Numa delas, Lelé foi convocado às pressas para acompanhar a cantora Dora Lopes, que se apresentaria num circo na Cidade Livre. O profissional que ela havia contratado não apareceu. ;A surpresa foi que, no último número, ela fez um striptease. Ao final, as luzes se apagaram e ela, para criar um clima no público, se encostou ;escandalosamente; no arquiteto. Só se ouvia os candangos gritando: ;Agarra, doutor, agarra;.

O arquiteto das obras funcionais e delicadas segue contando as histórias, uma atrás da outra, uma mais surpreendente que a outra, e se emociona com as lembranças dos três anos que mudaram para sempre a sua vida. O carioca do Encantado conta que chegou ao Planalto Central goiano e foi envolvido por um céu estrelado, de horizonte sem limites e chão sem luzes. ;Parecia que eu estava incorporado ao universo;, diz o arquiteto. Brasília ;foi um renascimento;.

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