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Mercearia, no Núcleo Bandeirante, é o último comércio que mantém viva a história das lojas pioneiras

Remanescente dos tempos das vendas, uma mercearia do Núcleo Bandeirante mantém intacta boa parte de sua estrutura. Melhor ainda: até hoje, podem ser encontrados ali artigos expostos como antigamente

Renato Alves
postado em 15/03/2010 08:19
Casas e lojas de madeira do Núcleo Bandeirante, a antiga Cidade Livre, nascida do comércio (1)que abastecia os candangos das necessidades básicas, são as mais fortes lembranças da construção de Brasília. Os raros imóveis dessa época ainda de pé estão concentrados no Setor Metropolitana, onde boa parte dos funcionários da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) fixou moradia. E resta apenas uma loja com as características idênticas às das pioneiras. Mas ela está com os dias contados.

2ª foto, gaveteiros da época em que os funcionários da Novacap começaram a chegar, acima, anotações de contas dos clientes. Aqui, o tempo parouCom telhas de amianto e toda a estrutura de madeira, a Mercearia Metropolitana fica na Rua 14-A do setor, uma via sem saída. A clientela, formada quase que exclusivamente pelos moradores da quadra, diminui a cada ano. Os compradores mais antigos morreram ou mudaram de endereço. Quem ficou, no entanto, procura a venda mantida pelo casal Raimundo Ribeiro Rodrigues de Moura, 62 anos, e Maria José Pereira, 51, porque só ali se encontram determinados produtos, oferecidos de forma peculiar.

Ainda é possível comprar alimentos a granel na Mercearia Metropolitana. A loja também continua vendendo itens de armarinho. Zíperes, linhas e agulhas são expostos em caixas de madeira. Cadarços e até ratoeiras ficam pendurados em um varal, ao lado de buchas para banho e esponjas de aço. ;A gente gosta daqui porque lembra as vendas da Cidade Livre e lá do Nordeste;, comenta o nordestino Antônio Alves, 80 anos, ex-operário da Novacap e um dos fiéis clientes da Mercearia Metropolitana.

Moradores da Rua 14-A também procuram a venda de Raimundo e Maria para jogar conversa fora no fim de tarde, tomando a cerveja sempre gelada ou doses de cachaça, escorados no antigo balcão de madeira. ;Mas a bebida a gente só serve aos conhecidos, para não virar bagunça;, ressalta a sistemática Maria. Ela também é rígida com o horário de funcionamento da mercearia. O expediente vai das 8h às 13h30 e das 16h às 19h30. E não adianta implorar para abrir as portas fora desse período.

Bancos para clientes

Além do balcão, os clientes podem bater papo, beber e comer sentados em antigos bancos de madeira colocados na calçada. Em caso de necessidade, há um banheiro, também de madeira, do lado de fora, devidamente identificado com as iniciais ;WC;, pintadas de preto, na porta branca. Já o nome da loja está estampado com tinta branca, em letras garrafais, na fachada e em uma placa no passeio, igual às que tomavam conta das ruas da Cidade Livre.

Cearense de Pacujá, Raimundo de Moura faz questão de manter o mercado como original. ;Nunca nem tive daquelas máquinas registradoras, moço. As contas, eu faço no papel mesmo. Mas tenho a contabilidade certinha, guardada nos livros-caixa;, destaca. Ele também guarda uma balança e um cortador de mortadela com mais de 30 anos. Mas, recentemente, começou a sofrer pressão da mulher para fechar o negócio e substituir o mercado de madeira por uma casa de alvenaria.Raimundo de Moura preserva sua mercearia e também os velhos métodos de trabalho:

Raimundo resiste o quanto pode ao desejo da mulher, também cearense, só que de Tianguá. ;Era pra ser no próximo mês (a demolição da loja), mas acho que vou esperar mais uns três meses;, despista o comerciante. ;Nada disso. A gente já tá até comprando uns tijolos;, interrompe, brava, Maria José. Para ela, não há mais necessidade de tanto trabalho e da preocupação que um comércio demandam. ;Os nossos filhos já estão todos criados. Agora está na hora de a gente descansar;, argumenta.

Torrador de café


Raimundo chegou a Brasília em 1964. Logo arrumou emprego como torrador de café. Não satisfeito, montou sua primeira mercearia de madeira dois anos depois, na Metropolitana. Vendia basicamente produtos de armarinho e alimentos a granel, como mortadela, café, canela em casca, farinha, feijão, macarrão. Na época, disputava clientes com outros cinco mercadinhos da Metropolitana. ;Não tinha supermercado grande. O povo comprava tudo na gente;, recorda.

Dez anos após desembarcar na jovem capital do país, Raimundo decidiu mudar de ponto. Foi aí que abriu a Mercearia Metropolitana, na Rua 14-A, com as mesmas características e produtos da anterior. Em 1976, Joaquim e Maria José casaram-se. Ergueram a casa nos fundos do mercado e passaram a viver e trabalhar unidos. Criaram os quatro filhos com a renda do pequeno negócio. Sem vender fiado a quem não morava na rua.Remanescente dos tempos das vendas, uma mercearia do Núcleo Bandeirante mantém intacta boa parte de sua estrutura. Melhor ainda: até hoje, podem ser encontrados ali artigos expostos como antigamente


1 - Tempos de zinco e palha
Quando surgiu, em 1957, o Núcleo Bandeirante, então Cidade Livre, já contava 2,2 mil habitantes. Eram donos e funcionários das 342 edificações de madeira recobertas com chapas de alumínio, de zinco e até mesmo com palha, registradas no meio do ano: armazéns de secos e molhados, casas de tecidos, restaurantes, barbearias, tinturarias, marcenarias, açougues, farmácias, escolas (duas), cinema, bares, pensões e hotéis. A energia elétrica e a iluminação eram garantidas por motores e geradores particulares. A captação de água era feita no Córrego Vicente Pires. As ruas de chão batido evidenciavam o caráter provisório da cidade.

Memória
A especulação já se espalhou


A Metropolitana, espécie de bairro do Núcleo Bandeirante, teve a sua origem no acampamento montado para abrigar os engenheiros e trabalhadores da Companhia Metropolitana de Estradas ; um braço da Novacap ;, responsável pelas obras de terraplanagem da pista de pouso de aviões, futuro aeroporto de Brasília. Conforme censo da Novacap, moravam na Metropolitana, em março de 1957, 127 homens, 28 mulheres e 25 crianças.

A fixação e a regularização da Metropolitana, em 1983, ocorreram com a luta dos moradores. O parcelamento proposto para a fixação tentou, de alguma forma, manter o arruamento original do acampamento, mas a rigidez da legislação urbana, não adaptada às necessidades da preservação de uma localidade remanescente de um acampamento pioneiro, acabou por contribuir para a descaracterização do local.

Muitos moradores antigos não se sentem familiarizados com a Metropolitana devido às modificações das casas ; agora em alvenaria ;, dos lotes e da própria vegetação. Além disso, muitos vizinhos antigos mudaram-se devido à especulação imobiliária. Mesmo assim, o setor é um espaço referencial para a memória e a história de Brasília. Lá ainda existem lugares e edificações da época do acampamento, como a bica d;água, o campo de futebol, a Igreja Nossa Senhora Aparecida e a Escola da Metropolitana (hoje Centro de Ensino da Metropolitana), esta última, tombada como patrimônio histórico do DF. (RA)

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