Cidades

Mestre alemão na arte da marcenaria trabalhou em projetos de Brasília

Walter Reinicke trabalhou com os arquitetos Milton Ramos e Lelé, executou painéis de Athos Bulcão e agora, aos 80 anos, começa a pensar em diminuir o ritmo intenso de trabalho

postado em 17/03/2010 09:07
Toda a carpintaria do Palácio do Itamaraty, incluindo a belíssima escada do salão principal, foi feita por um mestre alemão que está em Brasília há 53 anos e por seu amigo e sócio, também alemão, já falecido. A dupla Walter Reinicke e Werner Grumpich executou boa parte dos acabamentos das obras do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, em Brasília. Também é da autoria deles todo o madeiramento da SQS 108, a quadra-modelo, e de vários painéis de Athos Bulcão, entre os quais os do Congresso Nacional. São ainda dos alemães as obras em madeira das embaixadas da Inglaterra e da Suíça e de três hospitais da Rede Sarah (em Brasília, Salvador e Belo Horizonte). ;Mais não sei quantas agências bancárias, edifícios e casas.;

Ele desenvolveu a tecnologia da pré-fabricação de madeira aqui no DFAos 80 anos, o marceneiro e velejador Walter Reinicke anuncia que pretende, dentro de no máximo dois anos, vender a marcenaria em que há 49 anos executa projetos particulares e de instituições privadas. Faz tempo que ele não presta serviço a órgãos públicos ou a construtoras. ;Eles fazem licitação e o mais barato ganha. Tenho que primar pela qualidade. Não sou o mais barato nem pretendo ser. Luto para ser o melhor;, diz, com seu forte sotaque alemão.

;Chegou a hora. Não quero trabalhar até os 90;, diz o filho de alemães nascido e criado em Bilbao, na Espanha, e que veio com a família para o Brasil, no início da década de 1950, para fugir da ;psicose de guerra;. O pai dele havia enfrentado três grandes conflitos num período de 30 anos: a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Civil Espanhola. Era hora de recomeçar a vida em território de paz.

Na Espanha, o pai de seu Walter era vendedor de máquinas e ferramentas para marcenaria. O filho aprendeu o ofício da marcenaria com um mestre alemão, Max Balzer, que também tinha vindo para o Brasil. ;Eu queria produzir alguma coisa, não queria só negociar. Pensei primeiramente em mecânica. Depois, surgiu a oportunidade de aprender marcenaria.;Quando apareceu a ideia de vir para Brasília, em 1957, seu Walter perguntou ao amigo Werner Grumpich, com quem já trabalhava, se ele não queria se aventurar ; ao que ouviu um abrupto ;não vou nem a pau;. Seu Walter insistiu para que viessem pelo menos conhecer a região. Vieram, mas aí os dois concordaram: ;Achei o fim da picada isso aqui. Eu era novo, solteiro, pensei em aproveitar e conhecer o Brasil;.

A marca de Reinicke é o esmero: Carpintaria
O que manteve a dupla de marceneiros alemães em Brasília foi o convite do IAPB, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários, para que montassem uma carpintaria no canteiro das obras da 108 Sul. Pouco depois, os dois começaram a trabalhar com e para Lelé. ;Ele chegou recém-formado, novinho.; Começou aí a longa amizade entre os três e a troca de ensinamentos: ;Desenvolvi com eles a tecnologia de pré-fabricação de madeira. Eles me ensinaram muito;, conta o arquiteto. ;Lelé tinha a ideia, nós tínhamos a prática e nós três juntávamos a teoria e a técnica;, diz o marceneiro. Do convívio intenso com Lelé, nasceu em seu Walter a vontade de ser arquiteto: ;Cheguei a pensar em estudar arquitetura;.

O ritmo de trabalho adiou o projeto, mas não ficou nenhuma frustração. Seu Walter tem uma prancheta sempre ativa em seu escritório, no SIA. Nela, desenha mobiliário, telhados, assoalhos, escadas, lambris, batentes, portas, janelas, corrimão, balaustre, brise-soleil ; tudo o que há de madeira numa obra de arquitetura. O projeto da casa onde mora é praticamente todo dele. O marceneiro comprou uma construção inacabada, ;feia;, abandonada havia oito anos. ;Desenhei todo o projeto. Ficava horas na prancheta. Moro nesta casa há quase 30 anos.;

O mestre marceneiro diz que Lelé e Milton Ramos foram os dois maiores arquitetos com quem trabalhou em Brasília. Seu Walter tenta reparar o que considera uma injustiça: se Oscar Niemeyer fez o projeto do Itamaraty, quem o desenvolveu e detalhou arduamente foi Milton Ramos, e disso pouco se fala. ;Ele ficava horas na prancheta procurando a solução para as colunas. Elas são distorcidas, principalmente as de canto, para que, de longe, se tenha a impressão de serem iguais.;

Projetos
Mesmo anunciando a aposentadoria para o próximo biênio, seu Walter diz que não vai parar a peleja. ;Vou arrumar um trabalho;, ele diz, sorrindo, como quem sabe que vai fazer uma estripulia. Não será fácil reduzir o ritmo: pouco depois das 8h, ele já está na marcenaria. Ao meio-dia, sai para almoçar em casa. ;Tiro um cochilo, a siesta espanhola.; Pouco depois das 15h, está de volta à peleja, da qual só se desvencilha depois das 18h, quando não há nenhum cliente para ser atendido. Quando ajudava a construir a 108 Sul, o ritmo era devorador: das 7h às 22h e no último ano e meio antes da inauguração da cidade, a carpintaria trabalhou 24 horas por dia, sem descanso. O mestre da marcenaria acredita que foi esse ritmo convulsivo de trabalho que tornou a nova capital irreversível. ;Não havia como parar.;

Olhar atento do velho mestre: qualidade irretocável na marcenariaDesde então, seu Walter manteve um ritmo à moda Brasília. Na prancheta dele, ontem pela manhã, havia o projeto de uma porta de 7,5 metros de comprimento. Na parede, um painel de Athos Bulcão para o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) feito em madeira laqueada com o desenho estilizado, e em relevo, do Plano Piloto. ;Havia dúvida se ia ficar bom. Então pedi pra fazer o protótipo. Eles gostaram e encomendaram as peças.; Na carpintaria, conjuntos de mesas e cadeiras que ele desenhou, executou, mas não teve tempo de oferecer às lojas.

Sem o sócio, sem herdeiros do ofício (e se a ideia de vender a marcenaria se mantiver), a maestria de seu Walter corre o risco de ser esquecida. Perguntado a respeito, ele levanta a possibilidade de dar palestras em faculdades e no Instituto de Arquitetos do Brasil, ;se quiserem, se me chamarem;. O velho marceneiro diz que os arquitetos recém-formados estão saindo ;muito crus; da faculdade. ;No tempo do Lelé (que deu aulas na Universidade de Brasília), duas vezes por ano vinha turmas de alunos conhecer a carpintaria.;

Com madeira, Walter Reinicke construiu sua vida profissional e pessoal. Sua mulher, Maria Helena, também é uma brava candanga. Sobrinha do seresteiro César Prates, ela foi morar numa das casas de madeira pré-fabricadas, da 109 Sul. Os dois tiveram dois filhos e têm três netas. ;Brasília é fantástica;, diz o mestre. Mais ainda quando, singrando o Lago Paranoá, ele a vê, toda iluminada. ;É uma beleza.;

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