postado em 18/03/2010 01:57
A conversa foi marcada numa churrascaria próximo à entrada de Valparaíso (GO), a 40km de Brasília. O lugar modesto estava vazio. Passava das 16h. Um homem miúdo, de cabelos grisalhos, olheiras profundas e andar vagaroso chega. Dirige um carro vermelho. Está sozinho. Veste uma camisa vermelha cuja estampa mostra dois pássaros da liberdade. De tão enclausurado, nem percebeu que carrega a liberdade no peito. O filho dele, um menino de 15 anos, matou o colega de 14 com dois tiros na nuca, a 200 metros da escola onde estudavam, em Ceilândia. O pai do garoto, em lágrimas, disse, nesta entrevista exclusiva ao Correio: ;Ele não matou só aquele menino. Ele me matou, matou a mãe dele e os irmãos. Destruiu duas famílias inteira;.Na quinta-feira passada, João (nome fictício) matou. Matou para se sentir superior. Matou, ele diz, para se defender. O menino matou como homem grande mata. Dias antes, comprou uma arma na Feira do Rolo, em Ceilândia. Por ela, pagou R$ 500. Dinheiro que alega ter juntado da pensão de R$ 150 que o pai paga à ex-mulher. E decidiu que as supostas ameaças que recebia do desafeto seriam resolvidas daquela forma. Antes de as aulas começaram, perto das 7h, indo à escola, Lucas Jerônimo foi alvejado. Caiu ali mesmo. João fugiu, pedalando uma bicicleta. No dia seguinte, Lucas morreu. A família doou o fígado, os rins e as córneas do filho.
À noite, depois das 24h que caracterizam o flagrante, o pai encaminhou o filho à Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA). João responderá pelo crime em liberdade. Prestará novos depoimentos, desta vez ao juiz da Vara da Infância e da Juventude (VIJ). E aguardará a medida socioeducativa do juizado. Poderá ficar internado no Caje, no máximo, por três anos. E, quando sair, maior de idade, o assassinato será esquecido pela lei. ;Só pela lei. A consciência vai acusar ele pro resto da vida;, insiste o pai.
Naquela churrascaria, tomando água com gás, o pai do menino treme as mãos. Preferiu a conversa ali, longe da casa, em Santa Maria, por vergonha dos vizinhos.
;Sei que vão sempre me apontar como pai do menino assassino;. receia. E pensa na dor dos pais de Lucas, o menino morto: ;O que eles estão passando hoje não tem família no mundo que merecia passar. É uma dor inexplicável;.
;Você vai ter que pagar;
César (nome fictício), piauiense de 47 anos, dois casamentos, seis filhos, vigilante de profissão. Pai de João ; o menino que, depois de uma discussão na escola com o colega (o motivo seria uma menina), resolveu acabar com a briga com dois tiros. Matou o colega e fugiu. ;Depois do que fez, ele sumiu. Ninguém mais achava ele. Quando apareceu no dia seguinte, me disse que tinha ido para a Expansão do Setor O e ficado por lá, escondido;, conta o pai.
César trabalhava naquela quinta-feira quando o telefone tocou. Era umas das filhas. Passava das 8h. ;Pai, o João matou um menino.; Nesse momento, ao contar o telefonema da filha, César chorou mais uma vez. ;Um colega do trabalho me deu um copo d;água. Eu não conseguia segurar.; César tentou entender a tragédia. Passando mal, dirigiu até Santa Maria, onde mora. Tentou achar o filho. Procurou pelos lugares onde ele costumava ir. Nada. Pela internet, deixou uma mensagem no Orkut do garoto: ;Você vai ter que pagar. Diga onde você está;.
À noite, ainda sem notícia do menino, César passou mal. ;Sou hipertenso e minha pressão foi a 18 por 14. Tive que ir pro hospital;, conta. ;No dia seguinte à tarde, ele entrou em contato. Disse que tava na Expansão do Setor O. Fui buscar ele. ;Eu só queria entregar ele pra polícia. Ele tava triste, não deu uma palavra no carro. Perguntei por que ele tinha feito aquilo. Ele não me respondeu.;
À noite, em companhia de um advogado conhecido, César levou o filho à Delegacia da Criança e do Adolescente. ;A delegada ouviu o meu filho e depois liberou. Ele vai esperar agora o juiz chamar.; Há uma semana, a vida de César sofreu uma reviravolta sem tamanho. Maior do que quando deixou o Piauí, com 17 anos, para tentar a sorte na cidade que vendia esperança. ;Lá no Piauí, todo mundo sonhava em vencer em Brasília;, diz.
Aos 17 anos, César sacolejou num ônibus por três dias até pisar na terra de JK. Trabalhou desde o dia em que chegou. Descobriu que tinha talento para ser porteiro e vigilante. Investiu na futura profissão. Casou-se cedo. Com a primeira mulher, uma moça humilde como ele, teve quatro filhos. João é o caçula. O casamento durou 10 anos. ;Quando me separei dela, o João tinha um ano e meio. A gente morava perto. Eu via ele todo dia;, diz o pai.
Comportamento
Tempos depois, César comprou uma casa em Ceilândia para a ex-mulher e os quatro filhos. Casou-se de novo. Teve mais dois filhos. Radicou-se em Santa Maria. ;O João sempre foi comportado. Nunca foi muito de falar.; O tempo passou. João chegou à adolescência. ;A gente não se encontrava todo dia por causa da distância e pelo meu trabalho. Tenho dois empregos. Trabalho 24 horas para folgar 12. Mas toda semana eu ligava, principalmente pra saber dele, que é o mais novo.;
João mudou de voz. Era a adolescência chegando. ;Até os 13 anos, era estudioso, depois notei que ele tava diferente. Começou a andar em más companhias. Falava sério com ele, mas acho que não adiantou;. César admite também que percebeu que o filho andava bebendo. ;Isso me preocupou muito. Ele negava.; E drogas? ;Ele dizia pra mim que não.;
Há quatro meses, César pisou pela primeira vez numa delegacia. João foi abordado por policiais militares, de madrugada, em Ceilândia. Na mochila, carregava uma arma. Da 19; DP, foi levado à DCA. ;Lá, ele disse que a arma tinha sido colocada na mochila dele, mas que não sabia.; Nem o pai acreditou. ;Apertei ele pra me contar, mas ele ficou calado. Depois de adolescente, ele não conversa mais com a gente...;
Da DCA, João foi ao Caje. Ficou ali por 24 horas. Liberaram-no, sob termo de responsabilidade dos pais. Há 10 dias, discutiu com um colega da escola. ;Ele disse que o colega tava brigando com a namorada e ele se meteu, pra defender a menina;, conta o pai. E continua: ;Ele me disse que o menino ameaçou ele;. As mães dos dois foram chamadas à escola. Os garotos prometeram acabar com a briga. Aos prantos, depois da tragédia, Marta Jerônimo da Silva, 41, mãe do menino morto, disse ao Correio: ;Vi nos olhos dele (de João) que ele não é uma boa pessoa;.
Lucas voltou a frequentar a escola. João, não. Há uma semana, decidiu que responderia a suposta ameaça, como acha que gente grande resolve. Atirou no colega da escola. Os dois tiros acertaram a nuca de Lucas, que caiu, perto de três colegas e da irmã de 7 anos. Levado ao hospital, não resistiu. Morreu horas depois. ;Quero que ele cumpra os anos que forem necessários. A justiça precisa ser feita, mesmo que isso nunca vá trazer o filho deles de volta;, reflete César. E garante: ;Se ele fugir, vou ser o primeiro a denunciar ele;.
Na manhã de terça-feira, o menino que matou outro menino jogava videogame. ;Cheguei na casa onde ele está (a mãe deixou Ceilândia) e ele tava na televisão. Conversamos um pouco, como há muito tempo a gente não fazia. Ele me deu um abraço. Nem lembrava mais do abraço dele;, diz o pai, enxugando as lágrimas. Depois, lamenta: ;Queria acordar e sentir que tudo é um pesadelo. Me pergunto onde errei, por que não pude fazer nada. Não consigo entrar em casa e imaginar que tenho um filho assassino;.
E atribui, ainda chorando, parte da tragédia a si mesmo: ;Me sinto culpado por não ter ficado mais próximo dele. Ao mesmo tempo me pergunto: ;Como meus outros cinco filhos não ficaram assim, já que foram criados da mesma forma?; Vou lhe confessar, pensei em bater nele, quando encontrei ele, mas como ia bater se tava tentando entender tudo aquilo?; E o futuro? ;Só quero que ele peça perdão à família do menino com a própria consciência;, suplica o pai.
Dois tiros, uma tragédia para sempre, duas famílias dilaceradas. Um menino de 14 anos morto. Sonhos interrompidos. Um de 15 preso nele mesmo e com a justiça dos meninos que matam. Uma mãe que chora pela dor de enterrar o filho, quando a lógica se inverte. As lágrimas e a impotência de um pai por não ter podido evitar que um filho matasse. ;Disse a ele: ;Vou fazer o meu papel. Vou lhe visitar toda semana no Caje. Vai doer muito, mas eu vou. Você é meu filho...; É dor que vai doer pro resto da vida. Em ambos os lados.
Queria acordar e sentir que tudo é um pesadelo. Me pergunto onde errei, por que não pude fazer nada. Não consigo entrar em casa e imaginar que tenho um filho assassino;
César, pai do menor infrator
Em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, os nomes do pai e do filho são fictícios