Cidades

Quando adolescente, Zenaide Barbosa dos Santos serviu café em xícara roída a Juscelino Kubitschek

Sua vida de menina é um retrato de como viviam os sertanejos do cerrado

postado em 20/03/2010 08:22
Zenaide e a sobrinha Delinha catavam galhos secos para acender o fogão a lenha quando ouviram um rugido cortando o céu sem fim. Viram o monstro de lata se aproximar do chão esquecido do cerrado e correram para dentro da casa do vaqueiro, um de seus 19 irmãos, com quem moravam. Sabiam o que era um avião, mas naquele sertão goiano, só os bichos de asas voavam. Algum tempo depois, o irmão mais velho de Zenaide, Sebastião, chegou dando ordens: ;Naide, vai fazer um café bem bom na casa grande para o doutor Jorcelino, o presidente da República;.

Sobre a foto histórica, Zenaide pondera: A adolescente goiana, nascida em Anápolis, lavou rapidamente o rosto, molhou os cabelos castanhos, com os dedos fez alguns cachinhos e correu para o casarão da Fazenda do Gama. Enquanto esperava a água ferver, lavou as seis xícaras de flandres que havia na casa, limpou a bandeja e pôs o pó de café (colhido, socado, moído e torrado lá mesmo) no saco de pano pendurado em uma haste de alumínio. Nisso, chegou à cozinha um homem da comitiva e recomendou que as louças fossem muito bem lavadas, porque iriam servir o presidente da República. ;Aqui ninguém costuma usar vasilha sem lavar;, respondeu a goiana insolente.

Café pronto, bule fumegante, Zenaide apareceu na sala para servir a importante comitiva. Quando encheu a xícara do mais sorridente dos homens ali presentes, ouviu a pergunta: ;Como é seu nome?; ; Zenaide. ;Você me conhece?; ; Conheço, o senhor é o presidente Juscelino. A mocinha planaltinense esperava ouvir mais uma pergunta: ;Como você me conhece neste fim de mundo, sem televisão nem jornal?;. Mas JK não quis encompridar a prosa.

Se tivesse perguntado, ele saberia que a adolescente que lhe serviu café havia morado seis anos em Copacabana, no Rio de Janeiro, na casa de uma família de classe média. Fazia menos de seis meses que Zenaide estava de volta ao Planalto Central. Isso explica as sobrancelhas finas, feitas à gilete, o penteado e o vestido de seda. ;Eles me vestiam com os melhores tecidos, linho, seda, cambraia. Quando voltei pra roça, eu não tinha reserva de roupa. Não tinha pra onde ir. Então, usava todas elas em casa.;

Mudança de rumo
O mundo mudou terrivelmente desde aquele cafezinho em xícara estropiada. ;Eu te digo. Se fosse hoje, conhecendo a ciência da saúde, se me servissem um café numa xícara daquela, eu não tomaria. Não tinha nada inteiro naqueles xícaras e naquele bule, mas todos eles tomaram o café. O presidente estava tranquilo, era um homem simpático, educado, muito fino;, lembra-se Zenaide. Com JK estavam, entre outros, o engenheiro Bernardo Sayão, o governador de Goiás, Juca Ludovico, e o médico Ernesto Silva.

Quando chegou a hora da foto do lado de fora da casa, toda a comitiva, mais o vaqueiro e a família (o gerente não estava) se postaram em um semicírculo do qual galinhas e porcos, não convidados, resolveram se aproximar. Um assessor mais zeloso quis afastar a bicharada, ao que Juscelino interferiu: ;Deixe eles aí;. E pediu a alguém da casa: ; Traga um milho, por favor;. E começou a alimentar as galinhas. Depois, pediu a Sebastião, o irmão de Zenaide, que lhe emprestasse a calça de boiadeiro para que ele pudesse cavalgar pelas redondezas. Foi o que fez, rapidamente.

Dali em diante, a vida de Zenaide mudaria mais uma vez e muito. A Fazenda do Gama foi desapropriada, o irmão dela foi para a Fazenda do Riacho Fundo e a moça do cafezinho foi para a Fazenda do Torto morar com uma irmã. Período de muito trabalho: ;Eu levantava às três da manhã para moer cana e fazer café para meu cunhado, que trabalhava num areal perto de onde hoje é o Posto Colorado. Tinha dias que ia vender manga, laranja, caldo de cana para os candango. Subia o morro (de Sobradinho) carregando tudo isso na cabeça, quando não tinha de correr de gado e de onça;.

Tanto tempo depois, ela conclui que Brasília é, na verdade, %u201Cum pedaço do céu%u201DNão foi fácil o começo do viver de Zenaide. Aos 7 anos, ela foi entregue a uma família remediada que morava na área urbana de Planaltina. O pretexto era o de prover os estudos da garotinha da roça, mas a razão verdadeira era fazê-la empregada doméstica sem nenhum custo. ;Eu dava um duro, minha filha. Eles me tiravam da cama muito cedo pra acender o fogo de lenha e o sono era tão grande que eu dormia no monte de lenha. Depois varia a casa, varia o quintal e cuidava das duas meninas. A mais nova vivia enganchada na minha cintura. Meu repouso era um pedaço de coberta, dessas que o povo chama de estica-negrinho. Ela era partida ao meio. Metade forrava o chão e com a outra metade eu me embrulhava.;

De volta
Depois que a mãe morreu, Zenaide foi entregue a uma família do Rio de Janeiro. Ali, a vida não lhe castigou tanto. A tarefa principal da adolescente goiana era fazer companhia para a mãe da dona da casa. Fazia alguns serviços domésticos e não tinha o direito de ir à escola. A dona da casa era quem lhe ensinava os fundamentos da leitura e da aritmética. Da janela do apartamento ela via o mar, porém não era ele quem lhe tomava os olhos. Eram os navios enormes, iluminados, que ancoravam bem antes da praia. ;Me diziam que havia uma cidade dentro deles e eu ficava imaginando como seria essa cidade.;

Os encantos do Rio não contiveram a saudade que Zenaide sentia de sua família. Nem mesmo as bonecas de borracha, vestidas de tule, ajudaram a diminuir a tristeza. Até então, a menina sertaneja só havia tido bonecas feitas de sabugo de milho, com cabelo de milho, roupa de retalho e rostinho desenhado com carvão ou tinta de papel-chifom molhado. Foi uma negra quem lhes apresentou, em Planaltina, as bonecas de pano.

Zenaide tanto fez que conseguiu voltar para o quadradinho. Depois de passar uns dias na casa da avó, em Goiânia, voltou para Brasília. O pai já havia morrido. A adolescente foi morar na casa do irmão que era vaqueiro na Fazenda do Gama. Fazia pouco tempo, não mais de seis meses que ela havia voltado do Rio de Janeiro quando o presidente da República bateu na sua porta e tomou o café que ela fez e serviu. Não fosse a foto histórica, ninguém saberia da história da moça do cafezinho.

Zenaide Barbosa dos Santos, hoje com 70 anos, se casou aos 24 com o motorista da Novacap José dos Santos, morto há 10 anos. Teve dois filhos (um deles é motorista da Presidência da República e o outro é eletricista), criou um sobrinho. Tem nove netos e um bisneto. De vida modesta, cercada de fotos da família, ela diz que Brasília transformou esse pedaço de sertão goiano ;num pedaço do céu.;

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