Renato Alves
postado em 21/03/2010 08:14
Parte dos 10 mil moradores de Corumbá de Goiás não esconde o medo e a desconfiança que tomaram conta da cidade goiana há uma semana. Na área urbana, eles falam em voz baixa e evitam esticar conversa com estranhos. Na zona rural, onde vive um terço da população do município distante 128km de Brasília, trabalhadores e fazendeiros são ainda mais comedidos e precavidos. Alguns carregam armas de fogo na cintura ou mesmo em punho. Tudo por causa de uma investigação iniciada há oito meses e que, no último fim de semana, resultou na prisão de dois policiais militares e dois chacareiros. Todos suspeitos de integrar um grupo acusado de crimes que vão de roubo e receptação de veículos roubados a execuções sumárias.Uma das vítimas do bando seria o soldado Rodrigo Pereira de Siqueira, morto aos 31 anos com dois tiros de espingarda à queima roupa. Policial militar havia uma década, ele foi surpreendido quando abria a porteira da chácara onde acabara de plantar mudas de eucalipto no intuito de engordar a renda com a venda para replantio em áreas degradadas. Mesmo segurando a pistola automática da corporação na mão, o que indica, no mínimo, um certo temor, Rodrigo não teve chance de reagir. O desconhecido saltou do mato já disparando. Sumiu sem deixar pistas. O assassinato ocorreu em 6 de julho do ano passado, mas somente há uma semana a Polícia Civil goiana conseguiu começar a desvendar o mistério, após a prisão de Clésio Eliandro de Assis, 35 anos, e o pai dele, João de Assis, 70.
Cumprindo mandado de busca e apreensão, agentes estiveram no sítio onde Clésio e João moravam para averiguar denúncia que a propriedade servia de desmanche de veículos roubados na região do Entorno e em Brasília. Encontraram duas espingardas e dois revólveres na casa, mas nada de carro ou moto. No entanto, sabendo que seria autuado por porte ilegal de arma, Clésio confessou a morte do soldado Rodrigo e disse que uma das espingardas, calibre .22, era a arma do crime. ;Ele afirmou que não era para a arma estar ali, que deve ter sido plantada pelo mandante do crime para ficar livre dele. Como supostamente acabaram envolvendo seu pai, Clésio decidiu entregar os demais;, explicou a delegada Mayana Rezende, um dos três policiais civis lotados em Corumbá.
Delação contra PMs
Na delegacia, Clésio contou ter recebido R$ 10 mil do soldado Clédio Vilela Cardoso, 36 anos, para executar Rodrigo. O motivo da encomenda seria o medo da vítima denunciar Clédio e outros PMs de Corumbá e região por envolvimento em crimes. ;O Rodrigo morreu porque sabia demais, segundo o Clésio;, comentou a delegada Mayana. Os soldados Clédio e Dênis de Assis Furtado, 29, acabaram presos no dia seguinte ao depoimento de Clésio. Desde então, estão trancafiados no presídio militar da PM de Goiás, em Goiânia. Clésio e o pai permanecem presos em Corumbá. ;Falta esclarecer a participação do Dênis. Claro que investigamos a denúncia de envolvimento de policiais militares com roubo e desmanche de veículos. Ainda vamos ouvir muita gente;, adiantou a delegada da cidade.
Rodrigo participou de uma operação contra roubo, receptação e desmanche de veículos roubados realizada em Corumbá há dois anos e meio. Na oportunidade, entre outros, o soldado e colegas prenderam Clésio de Assis. Aquele que viria a ser o seu assassino confesso acabou flagrado com dezenas de motos levadas de moradores do Entorno. Cumpriu parte da pena no presídio do município. Estava em liberdade condicional quando diz ter recebido e aceito a proposta para executar o soldado Rodrigo. Familiares e amigos do policial assassinado afirmam que ele nunca falou de crime cometido por colegas de trabalho nem de ameaças. ;Ele era muito reservado, nunca falava do trabalho;, observou Ana Karla Ribeiro Cardoso, 22 anos, com quem Rodrigo namorou por cinco anos até ser morto.
Caçula de 12 filhos de um casal goiano, Rodrigo concluiu o curso de engenharia mecânica numa faculdade de Anápolis (GO) em 2007. Mas não fazia planos de deixar a PM, pois dizia estar satisfeito com a profissão de militar. ;O que me dói é saber que ele estudou para entrar na polícia e ter uma vida melhor e morreu por ser correto demais, não compactuar com as coisas erradas que os colegas de farda faziam;, desabafou Tânia Pereira de Siqueira, 41, irmã de Rodrigo. Os dois e a filha de Tânia, de 18 anos, dividiam uma casa simples de três quartos, herança dos pais, já mortos. ;Ele (Rodrigo) era como um filho, um amigo. Me ajudava em tudo, inclusive com a faculdade da minha filha;, ressaltou Tânia. Ela disse ainda estar aliviada com a prisão dos suspeitos. ;A gente vivia com medo.;
"O que me dói é saber que ele estudou para entrar na polícia e ter uma vida melhor e morreu por ser correto demais, não compactuar com as coisas erradas que os colegas de farda faziam"
Tânia Pereira de Siqueira, 41 anos, irmã de Rodrigo Pereira de Siqueira, PM assassinado em 6 de julho de 2009
Homem aponta arma para repórteres
Diferentemente do ocorrido com os familiares de Rodrigo, a prisão dos quatro suspeitos e a publicidade da investigação sobre um grupo de supostos policiais bandidos parece ter levado pânico a alguns dos PMs de Corumbá. À procura do local onde o soldado foi executado, a equipe do Correio ficou sob a mira de uma pistola automática, igual à de uso restrito das polícias, na tarde de quinta-feira. Dizendo ser policial militar, mas sem farda e sobre um cavalo de raça, um homem interrogou o repórter, enquanto mantinha a arma apontada para sua cabeça. Não adiantou os adesivos com o nome do jornal na lateral do carro de reportagem. Ele perguntou se eram homens do serviço de inteligência da PM ou da Polícia Civil. ;Aqui anda muito perigoso. Na dúvida, vão (morrer) vocês antes de mim;, afirmou.
O desconhecido só deixou a equipe seguir viagem após o repórter contar o motivo da presença de todos ali e de falar do soldado Rodrigo. ;Me desculpem, mas não sabemos mais em quem confiar;, argumentou, ainda com a arma direcionada ao jornalista. Nas propriedades vizinhas à chácara onde o soldado tombou com dois tiros no peito, ninguém quis dar entrevista. De longe, foi possível ver homens armados. ;A desconfiança é normal. Ninguém mais sabe quem é quem nessa história. E todos sabem que estamos investigando outros crimes, que não posso detalhar agora;, argumentou Mayana Rezende. Até a chegada dela, há um mês e meio, Corumbá não tinha delegado. Agora a cidade conta também com um agente e um escrivão. O trio está empenhado na investigação contra os militares.
Corumbá conta apenas com um pelotão da PM, subordinado à unidade de Pirenópolis, a 20km. Por dois dias, o Correio tentou entrevistar o comandante dos quartéis de Corumbá e Pirenópolis. Não encontrou os dois nas cidades nem recebeu retornos dos telefonemas. Sempre que a equipe do jornal chegava a um município, soldados diziam que o chefe estava em outro. A ação de um grupo de extermínio é uma das linhas de investigação para o misterioso sumiço de seis jovens de Luziânia, também no Entorno. Há duas semanas, o comandante e outros sete PMs do batalhão de Formosa, outra cidade goiana vizinha do DF, foram afastados por suspeita de integrarem um esquadrão da morte.