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Primeira escrivã do cartório de Formosa conta os segredos de 105 aniversários

Fé e um cálice de vinho tinto todo santo dia

postado em 24/03/2010 07:41
Entrar na casa de Maria Augusto Lobo é como estabelecer contato consigo mesmo. E a pergunta se torna inevitável: o que fizemos ou estamos fazendo da nossa própria vida? Ali, naquele mesmo lugar há mais de 80 anos, habita uma mulher que cravou um pacto com o tempo e com o melhor que ele pode oferecer. Pra começar, esqueçam de vez o nome dela. É muito sisudo. E ela, definitivamente, nada tem de austera. Maria Augusta não combina com essa mulher de cabelos prateados, sorriso destemido, olhar que entra na alma de quem está diante dela e mãos enrugadas que afagam. Chamem-na apenas de dona Sinhá, como ela sempre ouviu ser chamada. Ou, sem rodeios, Sinhá. Esta, sim, é a sonoridade do afeto. O nome que amou, embalou, acolheu, viveu, chorou, sorriu, aconselhou. E que quer viver. Ainda muito. Dona Sinhá deseja comungar todos os domingos.

Na parede da sala de visita, Sinhá tem companhia no retrato de seu marido Jonas. Na segunda-feira passada, ela completou 105 anos. Está escrito corretamente. Cento e cinco marços. Uma vida inteira dedicada a fazer o bem. Insistir para que outros tivessem dignidade. E isso vem de longe, desde os tempos em que, na cela de um cavalo, ela corria a redondeza de Goiás para fazer casamentos. Ensinar as letras a quem não sabia que letras davam cidadania. Sinhá foi a primeira escrivã de Formosa (GO), cidade a 75km de Brasília. A primeira mulher a ;trabalhar fora;, mesmo que o Cartório de Registro Civil funcionasse no quarto da frente da casa onde mora desde sempre. É hoje, segundo registros públicos, a mulher mais idosa do entorno goiano.

Sinhá se casou cedo, aos 16 anos. Jonas tinha 20. Juraram amor eterno. Mas o destino não quis que envelhecessem juntos. Aos 35 anos, o homem com quem teve seis filhos e lhe trazia flores da rua (Sinhá adora flores e rosas) morreu de tuberculose. Sinhá chorou choro de amor e dor. Chorou até acreditar que parte dela tinha ido junto. Vestiu-se de preto aos 33 anos. ;Ele foi o primeiro e o único homem que amei na vida;, ela diz. Na sala, a foto de Jonas a acompanha com os olhos. ;Ele era muito bonito;, diz, saudosa, olhando a imagem pendurada na parede da casa centenária. Pretendentes ricos choveram. Ela rejeitou todos: ;Nunca quis padrasto pros meus filhos;.

A vida precisava seguir. Havia seis filhos para educar e matar a fome. Começava o ano de 1938. O juiz da cidade a nomeou escrivã do cartório. Com letra bordada do curso primário do Colégio São José. Na frente da casa, abriu-se o mundo de Sinhá. Ela passou a registrar os nascimentos, as mortes e as mais diversas procurações. Nunca deixou de atender quem não tinha dinheiro para pagar as certidões. Abria as portas às sete da manhã e só fechava quando o último era atendido. ;O cartório foi meu segundo marido.;

Os filhos de Sinhá cresceram. Estudaram. Aos domingos, ela carregava todos à missa. A devoção a Nossa Senhora e ao Sagrado Coração de Jesus a curou da dor de perder o marido e da tristeza de se ver, de uma hora para outra, sem o homem que lhe trazia flores para enfeitar a casa. ;Acho que a fé fez minha avó viver tanto;, diz a neta Augusta Umbelina Lobo, 52. Dos seis filhos que Sinhá pariu, apenas as filhas estão vivas: Edna, 85, mãe de Augusta Umbelina; Elza, 83, e Eleusa, 78. A família cresceu. ;São 25 netos, 53 bisnetos, 15 tataranetos e dois a caminho;, contabiliza Augusta, que herdou o nome da avó.

Um bom cálice

Segunda-feira, 16h40. O Correio voltou à casa de Sinhá, na goiana Formosa. Há três anos, a mesma equipe esteve ali para contar a história dos seus 102 anos. Àquela hora da tarde, ela lanchava. Tomava um copo de suco de cajá-manga. E comia uma empadinha de frango. Ao encontrar o repórter, disse: ;Estou zangada com você. Queria te dar umas palmadas. Você prometeu que voltaria pra comer uma costelinha de porco assada e nunca voltou. Demorou três anos pra aparecer de novo, né?;.

E abriu um sorriso tão bonito que enfeitiça quem é contemplado por ele. Aos 105 anos, Sinhá come de tudo. Só há um segredo. Sempre comeu pouco. Adora carne de porco. E não dispensa, um dia sequer, um cálice de vinho antes do almoço. ;O doutor Sebastião (médico dela há 48 anos) me disse que faz bem ao coração. Eu acreditei;, diz, às gargalhadas. E houve um tempo em que ela não dispensava o churrasquinho da pracinha e um copo de cerveja geladinha, para acompanhar o churrasquinho. ;Vovó, não era cerveja preta?;, indaga Augusta. ;Que preta, minha filha! Era cerveja comum.;

Diabetes? Sinhá nem sabe o que é. Hipertensão? Palavrão. Tem pressão de menina-moça. Lê sem óculos. E até hoje, quando alguém tem problema, corre para o colo dela. ;É nossa conselheira, para assuntos de trabalho, relação familiar e coisas de amor;, entrega a neta, a historiadora Lenita Lobo, viúva de 57 anos, três filhos. Sinhá devolve: ;É bom a gente ter alguma utilidade na vida, né, meu filho?;.

A prosa continua na sala, com Jonas, na parede, assistindo à conversa. Sinhá fala dela e de um passado que só ela sentiu e viveu. Lembranças muito pessoais. A certa altura, ela mesma se espanta: ;Tô com essa idade toda e não caduco. Acho que Deus quis assim;. Edna, a filha mais velha, não se lembra do telefone do encanador. Sinhá sabe de cor. E corrige a filha numa ou outra história: ;Não, Edna, não é bem assim. Tá faltando aquela parte;. Edna sabe, sempre soube, que a mãe tem razão. A memória de Sinhá impressiona essa gente de jaleco branco.

Comunhão

Aos 15: um ano depois, casou-se. Ele lhe mandava flores todo diaDe uns tempos pra cá, depois de uma queda no quintal, as pernas de Sinhá ficaram meio fracas. Deixou de ir à missa, mas a comunhão vai até ela. ;Eu ia visitar Jesus. Hoje, ele vem à minha casa;, agradece. ;É muito emocionante. Ela reza com fé. E só agradece;, conta a ministra da eucaristia Daniela Ribas, de 39 anos. Todo domingo, faça sol ou chuva, ela vai ao encontro da centenária mais conhecida da cidade.

Ao fim da conversa ; passava das 19h ;, de tanto ver aquela mulher esbanjar vida, digo-lhe que realmente ela é bonita. Ela fita a visita e devolve: ;Você tá ruim da vista, meu filho;. Gargalhada geral. Na despedida, cheia de ternura e com um sorriso que quase faz o visitante ficar mais um pouco, ela pede: ;Não passe mais três anos sem vir aqui, não;.

No primeiro encontro, em março de 2007, quando ela contava 102 anos, Sinhá resumiu bem a vida: ;A gente é quem faz ela (a vida) ser boa ou ruim. Só depende da gente saber viver;. Sinhá sempre sabe o que diz. Foi assim a vida inteirinha. É de uma sabedoria comovente. Escutá-la é como renascer. E conhecê-la é ter a certeza de que a humanidade ainda vale a pena. Parabéns, Sinhá!

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